Sempre que olho fotos antigas de Manaus algumas inquietações surgem sobre quem viveu aqui antes de nós e o que motivou os “estrangeiros” a se aventurarem por essa região, iniciando a construção de uma cidade na maior floresta tropical do mundo. Inquietudes que fortalecem o reconhecimento do privilégio que é viver na Amazônia, lugar que até hoje desafia o Brasil e exige um olhar diferenciado para sua exploração e ocupação,
Sabemos que Manaus está situada à margem do Rio Negro e é deste rio, o mais extenso de águas negras do mundo e o segundo maior em volume de água, que se tem um dos primeiros relatos de nossa região. A descrição foi feita pelo jesuíta Frei Gaspar de Carvajal, que acompanhou o espanhol Francisco de Orellana na histórica expedição Quito-Foz do Amazonas, entre os anos de 1539 a 1542.
O relato do Frei se encontra na obra ‘Descubrimiento del río de las Amazonas”:
“No sábado, véspera da Santíssima Trindade, mandou o Capitão fundear em uma povoação onde os índios se puzeram em defesa. Apesar disso os expulsámos de casa e nos ·provimos de comida, achando ainda algumas galinhas. Nesse mesmo dia, saindo d’ali, prosseguindo a nossa viagem, vimos uma boca de outro grande rio, à mão esquerda, que entrava no ·que navegávamos, e de água negra como tinta, e por isso lhe puzemos o nome de Rio Negro. Corria ele tanto e com tal ferocidade que em mais de vinte léguas fazia uma faixa na outra água, sem misturar-se com a mesma”
O relato foi feito em um sábado de junho de 1542 e, resguardados os traços poéticos e imaginários da época, Carvajal repassa muitas informações nesse trecho de sua obra, das quais a principal é a afirmação da existência de vários povoados indígenas às margens dos rios.
Outro relato histórico sobre o Rio Negro que merece atenção foi feito pelo padre jesuíta espanhol Cristóbal de Acuña em 1641 na obra “Nuevo Descubrimento Del Gran Río de Las Amazonas”:
“Os que residem nas aguas do Rio Negro são grandes Províncias, a saber: Caniçuaris, Aguayras, Y acuncarais, Cahuayapitis, Manacarús Yanmas, Guanamás, Carapanaris, Guarianacaguas, Acerabarís, Curupatabas; e os que primeiro povoam um braço que este rio lançã, por onde, segundo informações, se vem a sair no Rio Grande, em cuja boca, no mar do Norte estão os Holandêses, são os Guanaranaquazanas.”
O padre descreve não somente uma grande população indígena, continua com relatos sobre a fertilidade do solo para cultivo, riqueza de frutas, peixes e outros alimentos, além de grandes árvores para a extração de madeira a serem utilizadas na construção de embarcações e edificações. Acunã ainda diz: “Ha em sua foz bons sítios para fortalezas, e muita pedra para fabricá-las, com que se poderá defender a entrada ao inimigo que quízer ir por ele ao principal…”. Até para construção de fortes a área era apropriada.
Em ambos relatos a presença de povos indígenas é destacada. Então podemos e devemos acreditar que antes dos Espanhóis e dos Portugueses inúmeras etnias indígenas já habitavam a floresta e eram milhões. A população indígena em 1492 era estimada de 5 a 6 milhões para a grande Amazônia e de, pelo menos, 3 a 4 milhões para a bacia Amazônica, de acordo com o William M. Deneven, professor emérito de Geografia na University of Winsconsin-Madison e membro proeminente da Berkeley School of Latin Americanist Geography, em seu artigo “The native population of Amazonia in 1492 – Reconsidered”. Eramos milhões.
As incursões que foram registradas pelo Frei Gaspar de Carvajal faziam parte, mesmo que indiretamente, das ações de expansão marítima e comercial dos países ibéricos, Portugal e Espanha. Essas Ações iniciaram com as conquistas do México e do Peru e resultaram no extermínio de civilizações indígenas inteiras, com milhões de mortes. Nesse compasso contínuo de destruição, justificado pela busca de tesouros inimagináveis e lendários, exploradores foram designados para navegarem por locais ainda desconhecidos. A coroa espanhola iniciou a peregrinação pelos rios da região chamada Amazônia com Gonzalo Pizzaro e, posteriormente, com Francisco Orellana.
Com os relatos de vários rios navegáveis, milhares e milhares de índios passiveis de serem escravizados e terras férteis com comida em abundância a presença dos espanhóis na Amazônia chamou a atenção dos Portugueses que promoveram em 1637 a expedição com o objetivo de explorar um curso d´agua dominado por mulheres guerreiras, hábeis no manejo com cavalos: o rio das Amazonas. A expedição comandada pelo capitão português Pedro Teixeira foi descrita no livro “Novo Descobrimento do Grande Rio das Amazonas” e usada pelos portugueses para reivindicar a posse da Amazônia.
A expedição promoveu possibilidades para se identificar o território explorado, permitindo o planejamento da ocupação do Vale do Amazonas, com a instalação de fortes e missões religiosas nas margens dos rios. Um dos cronistas que acompanhou a expedição, Maurício de Heriarte escreveu: “Povoando-se este rio de Portugueses se pôde fazer um Império, e senhorear todo o das Amazonas e mais rios. He capaz de ter grande commercio por mar e por terra, assim com as índias de Castella, como com o Peru, e com toda a Europa.”
Em 1669 os portugueses fundaram o forte de São José do Rio Negro e surgiu o primeiro povoado de Manaus, antes um aldeamento de índios descidos do Japurá, os barés, do Japurá/Iça, os passés, do Rio Negro, os baniwas e os temidos Manaós. De acordo com o mestre Jose Ribamar Bessa Freire, em seu artigo “Barés, Manáos e Tarumã”, a fortaleza foi construída sobre um cemitério indígena e foi fundamental para o reordenamento do espaço amazônico, baseado na ocupação que necessitava destruir o que existia antes.
De lá para cá a história conta que índios foram escravizados e exterminados. Ajuricaba, da tribo dos Manaós, virou símbolo de resistência do índio. O povoado recebeu o nome de São José da Barra do Rio Negro e em 1832 foi chamado de Nossa Senhora da Conceição do Rio Negro, sendo o vilarejo elevado à categoria de vila. Em 1848 a vila foi elevada à categoria de cidade, a cidade da Barra do Rio Negro. Em 1856, em homenagem à nação indígena dos Manáos (Mãe dos Deuses), recebeu o nome de Manaós.
Olhando as fotos antigas de Manaus, chamada de “Paris dos Trópicos”, com o apogeu da exploração da borracha, passando pela criação da Zona Franca de Manaus, sendo considerada a “Miami Brasileira”, vejo que nossa história já possui muitas centenas de milhares de páginas já escritas e que precisam ser lidas. Conhecer nossa história, nossas origens é entender e valorizar o “nosso”. É o que nos faz MANAUARAS.
Entre amigos, residentes em outros estados, meu apelido é “índio” e tenho orgulho disso, pois, talvez eu não tenha alguma descendência com os Manaós, mas sou de Manaus. Índio de Manaus. Feliz Aniversário minha cidade amada.