18 de outubro de 2024

Perfeição

O milagre se fez. O cego enxergou, o surdo ouviu, o coxo correu. ELE falou: “Tudo o que faço, todos podem fazer, e até melhor”. Há quem duvide. Há quem veja de forma diferente da literal. Eu, não. Somos perfeitos em nossas imperfeições? O que é certo ou errado? O que é bom ou mau? O que é bem e mal?

Quem somos? O que somos? Filhos de um Deus que nos julgará no final de nossa vida terrena? Obra prima perdida nos descaminhos da vida? Quadro patético das imperfeições? Pintura irretocável no conjunto de santidades e de impurezas nela contidas, sublimada na possibilidade de depuração? O paraíso. O purgatório. O inferno. O que nos espera? O que representa cada uma destas três palavras? Onde estarão as labaredas do fogo eterno? As delícias do nirvana, com anjinhos batendo asas aos acordes de trombetas divinas?

Porque somos tão diferentes uns dos outros, como os dedos de nossas próprias mãos e tão iguais em nossas angústias, deficiências e carências? Porque não conseguimos olhar para o próximo como se estivéssemos à frente de um límpido espelho cuja imagem nos permitisse ver e enxergar verdadeiramente a intimidade dos nossos deuses e demônios bailando em cada partícula do nosso ser? 

Porque crianças nascem fisicamente defeituosas e outras são abortadas? Porque vivemos tempos diferentes e as famílias constituídas se desfazem num piscar de olhos? Porque as avarezas? Porque as desigualdades entre os seres humanos, quer materiais, intelectuais ou de qualquer outro tipo imaginável? 

Quem somos nós? O que somos nós? Gonzaguinha, poeta maior da solidão do asfalto, das ruas e vielas da vida, marcou nossas ancas, a ferro e fogo, com a denominação de “eterno aprendiz”, carimbo de identificação mais que definitivo e adequado a esse amontoado de duendes, loucos habitantes do manicômio chamado Terra, casa de recuperação de seres vis e sacros, a ignorar a própria origem e destino na infinitude desconhecida do Universo.

Caminho pela vida. Do asco ao grito maior de felicidade, tudo faz parte de mim. Da ousadia à timidez, caminho com a velocidade do corisco, surpreso e estupefato. Da candura da criança à intimidade de taras trafego impotente, incapaz de reconhecer o que representam e o que podem ou não somar para a minha evolução enquanto ser e me encontrar.

A cada segundo ocorre um fato novo, perceptível ou não, que poderá contribuir para a minha evolução. A visão de momento determinará se o abandono ou o abrigo em meu habitat ou no conjunto dos meus conhecimentos. A um só tempo, somos unidade ou fração diminuta de um só corpo. Vilões, algozes e vítimas de um mundo complexo, intrigante e, paradoxalmente, simples.  

Do dilúvio bíblico aos dias de hoje transitamos pelos descaminhos do homem das cavernas, da extinção dos dinossauros, doenças, terremotos, ciclones, furacões, tempestades, pragas, todos acontecidos à revelia da capacidade ativa ou inibidora da mão humana, impotente e reles observadora.

O bicho humano, do isolado das grutas e esconderijos, formou grupos, comunidades, vilas, cidades e metrópoles. Evoluiu? Involuiu? Estabeleceu normas. Criou a sociedade esculpida sob ditames e padrões aperfeiçoados ao longo do tempo, objetivando, em tese, a convivência harmônica e salutar entre os seus integrantes, sem jamais conseguir desvencilhar-se da natureza instintiva e conquistadora de sua origem animal.

Perdeu-se nas artimanhas enganosas da vitória a qualquer preço e do poder descabido. O que somos? Quem somos? Imagem e semelhança do Deus no qual acreditamos ou o fazemos, sim, retrato de nós? O fato, caríssimos amigos do JCAM, é que atropelamos o mundo e a nós próprios na estrada tortuosa do dia a dia. Permitimos o fortalecimento das iniquidades. Somos, hoje, o simulacro grotesco dos descalabros. Ou sempre fomos assim?

O que vemos? O passado, hoje esquecido. O presente, vilipendiado e entregue à sanha de todas as espécies de despudores. O futuro, envolto impotente por toda sorte de incertezas. O ser humano quedou-se, escravizado, às farsas, às mentiras e às nulidades. O que fazer? Como resgatar os valores perdidos nos abismos dos poços sem fundo? Na verdade, não sabemos. Provavelmente a prudência nos conduziria no sentido de ignorar a realidade. Fazer de contas que nada de anormal acontece. Quem sabe? Prefiro discordar.

Sodoma e Gomorra? O fato é que vivemos em uma sociedade sem rumo, proclamando-se futurista, na qual o respeito ao próximo mergulhou nas águas ferozes das cachoeiras, afogado nos turbilhões das correntezas dos descaminhos. Declaramos guerra ao pouco de dignidade que em nós restou. Ferimos de morte o coletivo e endeusamos o “eu”. Dividimo-nos em grupos fechados, nos quais os que a eles não pertencem são tachados de inimigos e seus pensamentos, a priori, criminalizados.

Aonde iremos parar? Os gestores dessa panaceia serão responsabilizados pelos danos provocados? Conseguirão implantar o caos social e a destruição da sociedade tal qual ela é? Ou, mais contundente ainda, a fonte criadora da vida, na plenitude da onipotência e onipresença que lhe são inerentes e se fazem visíveis nas forças da natureza, impingirá aos homens os seus desígnios pelos caminhos incontroláveis do imponderável? Quem de nós o desafiará?

Quem somos? O que somos? Aonde desejamos chegar? Pobres terráqueos, habitantes deste minúsculo planeta do Sistema Solar. Capazes de sorrir, amar, destruir, odiar. Dar luz e vida. Perdoar. Matar. Inocentes terráqueos: em suas mentiras, maldades, ofensas, vaidades. Divinos: na caridade. Demoníacos: na falsidade. 

Quem somos? O que somos? O que desejamos ser? O que pretendemos conquistar? O resumo histórico de nossa caminhada apresenta um sem fim de lutas por conquistas e poder. O ser das cavernas digladiavam pelo melhor espaço e pela fêmea desejada. As mutações aconteceram e o foco no espaço temporal transferiu-se para novos objetivos: a caverna mais próxima, a Vila, a cidade, o país, as culturas diferentes. Personalismos endeusados nas vaidades.

A cada passada o homo sapiens consolidou o domínio sobre os mais frágeis derrotados, impondo regras e escravizando. Assim foi a cada dia, década, centenário e milênio, até o exato momento em que me debruço sobre a mesa e escrevo, submerso em minhas elucubrações, ausente do mundo e de tudo o que me rodeia, Crusoé visitante dos altos da região serrana de Itaipava, nas cercanias da bela Petrópolis, no Estado do Rio de Janeiro.

O que somos? O que pretendemos ser? O que realmente virá? Não sei e ninguém saberá. Estou certo, porém, em minhas convicções, que os caminhos até hoje perseguidos por uma minoria teimosa e radical nos conduzirá ao abismo profundo da insensatez e da escravidão da grande maioria. A figura mulher da liberdade tornou-se visível a meio caminho de duas cavernas habitadas por dois trogloditas: um, a querer destruí-la; outro, a conquistá-la.

A batalha final está prestes a acontecer? O bem e o mal. O bom e o mau. Quem vencerá? As forças Divinas do imponderável farão pender a balança para um dos lados ou simplesmente promoverão o equilíbrio necessário? Quem somos? O que somos? O que pretendemos? Apenas procuramos a resposta adequada ou este emaranhado de ações na busca de conhecimento, poder e conquistas representam a tão sonhada estrada em busca da perfeição e da felicidade?

João Suzano

é escritor

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