23 de novembro de 2024

Manaus, ciclos e débâcles

Breno Rodrigo de Messias Leite*

A cidade de Manaus é um empreendimento urbano sui generis. Encravada no meio da maior floresta tropical do mundo, tendo como os seus afluentes os rios mais volumosos do planeta, uma composição étnica formada por índios, negros e brancos, Manaus é, ao mesmo tempo, um acúmulo de beleza e de um desafio econômico e político nacional e internacional.

A Belle Époque colocou a capital do Amazonas no circuito econômico mundial. Com o advento da Revolução Fordista, produção em massa de automóveis, o mercado mundial passa a demandar o produto que a Amazônia brasileira produz fartamente: o látex da seringueira. A transformação do látex natural em borracha serviu como o impulso que a cidade tanto precisava para assumir definitivamente os seus traços de modernidade – e, é claro, a sua acumulação primitiva de capital. Atraiu a imigração de europeus e norte-americanos e migração interna, especialmente de nordestinos.

A economia gomífera foi fundamental no processo de modernização urbana. Em termos de infraestrutura, a cidade passou a ter bondes elétricos, integrou a rede de telecomunicações, saneamento básico com água encanada, rede elétrica domiciliar; reestruturação do centro urbano; ruas e calçadas, praças, pontes, museus, hotéis, palácios e, não menos importante, o Teatro Amazonas. Outro ganho significativo foi o controle de doenças endêmicas comuns como a malaria, cólera e febre amarela.

Com o estrangulamento comercial e a concorrência dos produtores britânicos na Ásia, o ciclo da borracha tem a sua débâcle e é engolida em uma profunda crise econômica, financeira e social. Em 1939, iniciava-se o maior conflito armados de todos os tempos: a Segunda Grande Guerra Mundial. Todos os países do mundo direta ou indiretamente estavam envolvidos no conflito militar e diplomático. No aspecto político-militar existia um conflito dos países do Eixo Alemanha, Itália e Japão, que defendiam ações imperialistas e expansionistas, contra, os países Aliados capitaneados pelos Estados Unidos, França, União Soviética e Inglaterra que defendiam projetos democráticos, de cooperação internacional e economia de mercado (exceto a União Soviética). Já no aspecto econômico, a produção mundial armamentos, para alimentar o conflito, aumentou drasticamente a produção econômica mundial e de muitos outros mantimentos civis; a tecnologia foi aprimorada e os países fortaleceram-se e integraram-se cada vez mais.

O Brasil no período era presidido por Getúlio Vargas que até então não tinha tomado parte direta do conflito, à medida que tentava tirar vantagens geopolíticas e geoeconômicas da guerra em curso com a adoção de uma estratégia de “equidistância pragmática”, na feliz definição de Gerson Moura. A entrada formal do Brasil no conflito só se deu em 1942 após acordo Político-Industrial do Parque Industrial de Volta Redonda no Rio de Janeiro e o aprimoramento de uma política de incentivo a exportação de produtos brasileiros, bem como a importação de bens de capital necessários para impulsionar a industrialização do país firmado com os Estados Unidos.

O Amazonas não poderia está indiferente às transformações em processo em todo o globo e no Brasil. Houve uma retoma da produção tipo exportação do látex da borracha, pois as grandes potências demandavam uma quantidade excessiva do produto para o seu complexo industrial-militar. A produção da borracha asiática não conseguia atender a todos os pedidos internacionais, por isso a produção da borracha na Amazônia foi temporariamente retomada não só no Estado do Amazonas, mas em quase todos os Estados da região Amazônica.

Manaus também serviu, portanto, como importante centro atrativo dos refugiados de guerra e soldados da borracha. Os refugiados, em geral, eram grupos de judeus, libaneses, sírios que incentivaram o comércio; e japoneses que vieram trabalhar na economia da juta. Além dos grupos estrangeiros que migraram para o Amazonas, os soldados da borracha, que eram homens e mulheres da região nordeste, ocuparam postos setoriais para a produção da borracha e vulcanização do látex.

Após o período de 1945, isto é, o período do pós-guerra, Manaus, acompanhando as transformações nacionais e internacionais, ao invés de prosseguir com a política de incentivo a produção da borracha, retornou a decadência econômica anterior a 1939. A demanda mundial por borracha foi reduzida e o processo de industrialização das regiões centrais do país – São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul – concentrou e centralizou os capitais, deixando a Amazônia e o Amazonas de lado. Já nos alertara Antonio Loureiro: “Além da estagnação econômica, as aglomerações urbanas da Amazônia, no período, tiveram os seus serviços urbanos, conseguidos durante o ciclo da borracha, totalmente descuidados, entrando em decadências e tornando-se obsoletos, como o caso da eletricidade, em Manaus, que acarretou mais de 10 anos de trevas, na outrora rica e florescente capital da borracha [o Amazonas]”.

As políticas de desenvolvimento para a Amazônia nas décadas seguintes estavam em pleno funcionamento. De um lado, o declínio da produção da borracha; e do outro, a promoção da política de intervenção do Estado na economia. Quanto a esta antinomia do Amazonas e de praticamente todos os países da região norte, o professor José Aldemir de Oliveira é suficientemente claro em suas palavras: “Embora o discurso oficial apresentasse o Plano [de Valorização Econômica da Amazônia] como um grande esforço para o desenvolvimento da Amazônia, houve excessiva demora em sua regulamentação. Isso decorreu dos rumos da política econômica adotada após 1946, direcionada para garantir os princípios da ‘livre concorrência’. Passou-se de uma política de intervenção estatal na economia para uma política de redução das funções do poder público sobre a economia e de descompromisso com o desenvolvimento regional”. E o autor conclui a sua abordagem com as seguintes palavras, “O compromisso com a livre iniciativa e contra o intervencionismo do Estado aparece em todas as ações do governo no período de 1946 a 1950”.

Acontece, como afirmamos outrora, que não bastava desenvolver a economia local com industrialização pesada sem levar em consideração as populações tradicionais e as singularidades regionais. Era preciso estimular a economia das cidades amazônicas de maneira endógena e sustentável associada à produção de produtos locais.    

Outra estratégia de desenvolvimento regional se deveu às políticas relacionadas ao extrativismo, que tinham na produção da borracha, da juta, da castanha e outros produtos a sua principal matriz produtiva. Para isso, conforme assinala Umbelino de Oliveira, “foi criada em 1941 a Colônia Agrícola de Bela Vista que tinha como propósito central – dado o fato de não existir uma política efetiva de reforma agrária – doar lotes de terras da União e do Estado do Amazonas para assentamento rural”. Hoje em dia sabemos que jogar terras nas mãos de algumas pessoas e deixá-las sem assistência técnica, educacional e material é, em última análise, cometer um gravíssimo erro, mas certamente este erro foi muitas vazes cometido pelas políticas de desenvolvimento que aqui e alhures tentaram implementar. Na verdade, os personagens que se aproveitaram dessas medidas do Estado foram aqueles que tinham chegado recentemente: os japoneses na produção agrícola da juta; os judeus no trabalho associado ao comércio e os nordestinos na condição de soldados da borracha ou ainda trabalhadores da construção civil no espaço urbano. É certo que os vários grupos que migraram para o Amazonas junto com os povos tradicionais e os povos indígenas ajudaram significativamente a construir esse cadinho que pertence a todos e a todas.

Não podemos associar a integração regional e nacional a um único paradigma: a integração econômica. O processo de integração que é total, contínuo e contraditório e envolvem as dimensões sociais, culturais, políticas, geográficas, comunicativas etc. O processo de integração regional e nacional, assim, é a tentativa de se projetar o Amazonas no cenário de decisão nacional. Manaus, portanto, além de precisar se integrar a sua própria região deve promover o processo de integração nacional ou mesmo internacional.

Não é preciso ir muito longe para se dizer que a política de integração econômica, no aspecto regional e nacional, obteve um sucesso relativo. Acontece que não devemos nos limitar tão somente ao discurso da integração do ponto de vista econômico. Quanto mais se avança à discussão mais se percebe que o processo de integração cultural na Amazônia é pleno e contínuo. As populações indígenas, por exemplo, extrapolam as fronteiras políticas que os Estados Nacionais delimitam. Existe também uma relativa identidade e autonomia no que é relativo às formas de conhecimento local, que já na década de 1940, especificava bem a região Amazônica e o Estado do Amazonas como sendo a expressão desta região. Assim, podemos dizer que embora existam profundas dificuldades na logística de integração local-regional-nacional-internacional, no aspecto mais singular e peculiar da cultura dos povos da Amazônia o processo de integração cultual é amplamente disseminado e está, assim como sempre esteve, em pleno estreitamento.

Assim, podemos dizer que, numa década Manaus viveu um período de extrema ascensão e um profundo período de queda, que só foi rearticulada em 1967, com a implementação da Zona Franca de Manaus (ZFM). Criada em 1967, pelo decreto presidencial nº 288 de 28 de fevereiro, a Zona Franca de Manaus obedece à estratégia nacional de incentivar o desenvolvimento dos setores industrial, comercial e financeiro na região Amazônica. Mas para além dessa preocupação estritamente econômica, o modelo teve impactos sociais significativos, como a contenção do fluxo migratório da Região Norte para as Regiões Sul e Sudeste, redução do desmatamento, e maior participação de instituições governamentais com destaque para a Superintendência da Zona Franca de Manaus. Sem dúvida, a presença do modelo alterou a geopolítica de toda a Região e colocou a Amazônia definitivamente na agenda do Brasil.

Analisando em perspectiva, pode-se perceber muito bem que Manaus foi um grande laboratório de experimentos econômicos, sociais e humanos, pois da sua origem como metrópole, até hoje, passou pelos ciclos de prosperidade e declínio de seu capital social. Manaus é uma metrópole que precisa ser repensada urgentemente. Agora estamos diante dos desafios do desenvolvimento sustentável que promete ser limpo, duradouro e eficiente para o desenvolvimento da capital e de toda a região.

*é cientista político e professor de política internacional do Diplô Manaus. E-mail: [email protected]

Breno Rodrigo

É cientista político e professor de política internacional do diplô MANAUS. E-mail: [email protected]

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