19 de setembro de 2024

Yanomami: quem é o responsável por mais este genocídio?

*Assim, no lugar de precisar apontar este ou aquele arauto da morte – como juízes da hipocrisia – vamos construir a boa sorte daquilo que nos compete fazer e que pode resultar na pacificação geral, a começar pelos desvalidos a quem precisamos dar as mãos em nome da recuperação da vida, que só fará sentido sempre que for repartida. Vidas indígenas sempre importam.*

Por Alfredo Lopes- Portal BrasilAmazoniaAgora

Esta é uma pergunta que não pode ser respondida no calor da indignação e do oportunismo revanchista. E antes de ceder à tentação coletiva de vestir a toga dos juízes, é necessário que o país – em sua integralidade e sua história – ponha a mão na própria consciência, nos valores e crenças que descrevem mais de 500 anos de destruição, desprezo e indisfarçável eliminação étnica desde quando este Brasil se chamava de Terra da Santa Cruz. Seguimos, pois, numa encruzilhada: ou paramos para enfrentar como nação a própria consciência ética e étnica ou vamos transformar barulho em bravata até que o banzeiro da ritualística política se acalme outra vez. A realidade determina a mutação urgente entre intenção e mobilização da brasilidade.

*É inevitável apontar o dedo na direção do governo Bolsonaro e suas trapalhadas predatórias no modo permanente no trato da Amazônia, seu bioma, nossa gente.* Será hipócrita, porém, presumir sua única responsabilização. A comunidade internacional foi a primeira voz a contar para o país as trapalhadas do seu gestor, cuja maior façanha foi dividir o Brasil rapidamente e do pior jeito. Os ímpios e os escolhidos. Havia, também, no seu repertório simplista um plano com relação à Amazônia. Uma proposta com intenções de emenda à Constituição – um sonho de consumo até para setores do crime organizado – que não precisou ser aprovada para ser aplicada de supetão: a invasão de Terras Indígenas.

De acordo com Agência Senado, em 6 de fevereiro de 2020, chegou ao Congresso Nacional, o projeto de Lei que permitia mineração, turismo, pecuária, exploração de recursos hídricos e de hidrocarbonetos. *De iniciativa do governo federal, o projeto deveria regulamentar a exploração de terras indígenas (PL 191/2020), uma promessa de campanha do presidente da República.* Mas não foi preciso esperar a Lei. Medidas administrativas se adiantaram com o esvaziamento da fiscalização, em termos de recursos orçamentários e humanos, e a eliminação das multas. Em lugar do castigo, prêmios, os primeiros passos de entrega do açougue aos lobos famintos. Em tempo recorde, 20 mil garimpeiros já ocupavam a região sem impedimentos da ação pública. Dadas as dimensões continentais da Amazônia, a fiscalização, que é historicamente precária, sumiu. Depois de 2020, e com o esvaziamento geral provocado pela pandemia da COVID-19, os territórios indígenas Yanomami, entre outros, se transformaram em terra de ninguém.

Isso, entretanto, foi a radicalização acelerada de um movimento secular. Em governos anteriores, algumas denúncias podem ser encontradas, confirmando a ineficácia de tímidas políticas públicas do Estado brasileiro no zelo das etnias originárias. *Um exemplo disso é o relatório Violência Contra os Povos Indígenas, publicado pelo Cimi, Conselho Indigenista Missionário, que registrou, em 2014, 138 assassinatos e 135 casos de suicídios.* Somente no Mato Grosso do Sul, foram 41 assassinatos e 48 suicídios. Vale a pena visitar as dramáticas crises sanitárias do Vale do Javari, mundialmente conhecido por Vale da Morte. Com a palavra o MPF do Amazonas em 2014, com as ameaças aos indígenas Korubo, grupo isolado.

Também em 2014, o Brasil instituiu uma Comissão Nacional da Verdade para investigar os delitos do Regime Militar, que comprovou que os indígenas foram vítimas de graves violações de direitos humanos merecendo reparação. *Pela investigação concluiu-se que ao menos 8.350 indígenas foram mortos em massacres, esbulho de terras e remoções forçadas, contágio por doenças infecto-contagiosas, prisões, torturas e maus tratos, e sofreram tentativas de extermínio.* Essas informações fazem parte de um denso relatório da Rede de Cooperação Amazônica, A RCA, constituída em 2000, com a missão de promover a cooperação e troca de conhecimentos e experiências entre organizações indígenas e indigenistas, que atuam na Amazônia brasileira, para fortalecer a autonomia e ampliar a sustentabilidade dos Povos Indígenas no Brasil.

Em 2017, numeroso grupo de lideranças indígenas se reuniu no Estado do Acre para denunciar mais um retrato do descaso com a população indígena, sobretudo com a falta de assistência médica que estaria vitimando sobretudo crianças, como está ocorrendo agora na TI Yanomami. *Ou seja, desde as anotações de Frei Gaspar de Carvajal, cronista da expedição capitaneada por Francisco de Orellana, anterior a Pedro Alvares Cabral, já ficou confirmado o processo histórico de genocídio indígena.* O diário do religioso permite especular uma população de 6 milhões de indígenas na Amazônia no início do Século XVI. No alvorecer do Século XX, porém, já havia menos de 1 milhão.

O último grito de socorro, espalhado a partir da Amazônia Ocidental, neste 20 de janeiro de 2023, entretanto, trouxe à luz uma realidade que o Brasil insiste em empurrar para baixo do tapete não-indígena: está mais viva do que nunca a cultura civilizada (?) da depredação e do genocídio. *Dezenas de cartas enviadas pela ONU ao governo brasileiro, cobrando o abandono indígena, nos últimos três anos, foram respondidas pelo padrão fakenews da desinformação que passou a ser predominante na gestão Bolsonaro.* Um padrão que compõe a narrativa do ódio, da demonização de adversários e da absoluta recusa à interlocução construtiva.

Nessa onda, desavisados ou assumidos, segmentos crescentes da população naturalizaram o desembarque de estruturas sofisticadas de equipamentos e de transportes, energia e comunicação em terras indígenas. *Na bagagem do desembarque perverso, doses cavalares de mercúrio, a droga contagiosa da destruição, o portfólio da patologia branca, para matar silenciosamente indígenas indefesos.* Estupros, violência de toda ordem, destruição dos precários e raros equipamentos públicos de saúde. Polícia Federal e Força Nacional, instados pela opinião pública, bem que tentaram ensaiar a repressão ao crime liberado e organizados a partir da omissão/adesão do governo central.

É difícil sobreviver na Amazônia profunda com este padrão histórico de negligência institucionalizada. Os oportunistas do crime que operam nesse contexto secular das sombras permissivas e da impunidade a nenhum custo, se sentem confortáveis e recompensados. *Aqui, ao contrário das iniciativas pontuais da economia legal, aquelas que o Estado controla mas seu burocratismo inibe, a insegurança jurídica é premissa de facilitação e resultados*.

O desafio do momento é: manter a economia de contrapartida fiscal que existe na Amazônia Ocidental e espalha empregos, oportunidades e arrecada impostos para todo o país – vamos prestar bem atenção – e expulsar o crime resultantes do garimpo ilegal, que não emite nota fiscal, nem contribui com as atribuições do poder público. E quem será o vencedor? *Dizendo de outro jeito, vale a pena a sugestão para acompanhar quem será, no fim do dia, rechaçado ou reconhecido pelos emissários do Brasil central?* Vencerão aqueles que descobriram a pólvora da lavagem da economia que o garimpo ilegal representa – vidas Yanomami importam? – ou a economia transparente da política fiscal que gera os recursos necessários à gestão civilizado da Amazônia, de sua gente, especialmente de suas populações tradicionais?

O Brasil volta a ocupar as manchetes do espanto de suas mazelas e contradições na internacional. Tomara que isso nos incomode, nos constranja e ensine a meditar quem somos e que caminhos estamos escolhendo. Se importa identificar culpados, que comecemos principalmente essa busca em cada um de nós. O inferno são os outros se lembrarmos que na relação interpessoal o outro sou eu. *Assim, no lugar de precisar apontar este ou aquele arauto da morte – como juízes da hipocrisia – vamos construir a boa sorte daquilo que nos compete fazer e que pode resultar na pacificação geral, a começar pelos desvalidos a quem precisamos dar as mãos em nome da recuperação da vida, que só fará sentido sempre que for repartida. Vidas indígenas sempre importam.*

Alfredo Lopes

Escritor, consultor do CIEAM e editor-geral do portal BrasilAmazoniaAgora

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