23 de novembro de 2024

Jóias do Coroa

Anderson F. Fonseca. Professor de Direito Constitucional. Advogado. Especialista em Comércio Exterior e ZFM. 

IG: @anderson.f.fonseca    

As pessoas quando chegam ao poder não se transformam, elas se revelam. Frase atribuída a Frei Betto, frade dominicano, jornalista e escritor brasileiro demonstra quem sabe um pouco daquilo que ainda encontramos nesta quadra histórica em que vivemos em nossa Terrae Brasilis, sobretudo no tocante a (até aqui) inacabada (infelizmente) novela das joias presenteadas ao ex-mandatário da República e sua consorte.

Antes de tecer a necessária reflexão acerca dos meandros ético-juridicos que penso ser aplicáveis neste episódio da política nacional, uma breve e confesso reducionista versão dos fatos que levaram ao estado de coisas em que se encontra esta novela hoje.

Segundo encontrado em diversos periódicos nacionais o governo do ex-presidente brasileiro teria tentado trazer ao Brasil de forma não declarada joias avaliadas em cerca de R$ 16,5 milhões. Uma reportagem do jornal O Estado de S.Paulo expôs o caso, e novas revelações envolvendo os supostos presentes da Arábia Saudita ao ex-presidente e a sua esposa acabaram aparecendo, no momento em que escrevo este artigo já são três as caixas de joias presenteadas, descobertas e envolvidas neste imbróglio, além de armas e outros itens, em mais de cento e cinquenta viagens feitas pelo então dignatário brasileiro ao país árabe.

De acordo com o informe do Secretariado-Geral das Nações Unidas para Prevenção de Delitos e Justiça Criminal, conceitualmente, corrupção “consiste em algum tipo de abuso de poder, um abuso de função pública para obter vantagens pessoais diretas ou indiretas”, por seu turno John Noonan (Bribes, 1984) ao tratar do tema direciona este conceito para a prática de recebimento de presentes e propinas por parte de oficiais governamentais.

De se dizer que nas práticas mercantis transfronteiriças é comum haver a troca de presentes, sobretudo em visitas de Estado, neste aspecto a Diplomacia já de há muito ordena o protocolo a respeito, a título de exemplo encontrado inclusive no texto bíblico, três presentes foram levados ao menino Jesus pelos Reis que lhe foram procurar, tendo previamente procurado a Corte do Rei da Judea para saber de seu nascimento, demonstrando assim a ritualística de levar presentes a dignatários estrangeiros a fim de conservar os bons laços diplomáticos formados.

Afora o contexto bíblico, contudo, os gregos já consideravam a entrega e recebimento de presentes sob uma outra perspectiva, para eles “presentes” oferecidos eram recebidos pensando na correspondência recíproca de favores passados ou futuros, sem a necessidade de que estes favores fossem especificados, supunha-se que os beneficiários conheciam não somente o doador do presente como também seus interesses, por sua vez os doadores contavam que havia por parte dos beneficiários uma dívida de gratidão e possíveis contraprestações recíprocas. Desta maneira o conceito grego justificava sem maiores problemas presentes e propinas.

De se dizer que nos tempos em que vivemos “presentes são presentes”, o oferecimento destes pode simplesmente significar o estabelecimento de boas relações pessoais e institucionais, pode ser a demonstração do prestígio pessoal, satisfazer certas exigências religiosas ou pode constituir uma maneira de expressar diversos significados simbólicos.

O que não pode haver, como parece ser o caso, é a confusão entre termos, ora envolvimento a nada republicana ingerência ou interferência pública para obter vantagens pessoais, ora afirmando que nada houve de mais, que outros assim já procederam e que o dito “presente” teria sido oferecido a Nação e não ao seu governante.

Ao que parece a falta de transparência e a vontade livre e consciente de tentar subverter as regras do jogo, a que todos estamos submetidos, faz com que este episódio seja cada vez mais (infelizmente) corriqueiro ao passo de dever ser totalmente evitado, por qualquer agente público, representante ou não de governo.

Parece que se foi o tempo em que assuntos desta jaez eram tratados de outra maneira, deixem-me então prezados leitores contar-lhes uma singela história (com “h” mesmo) ocorrida com outro militar, comandante-em-chefe de nossa pátria, retirei este excerto do livro de Marco Morel “Corrupção” cujo capítulo é intitulado “A Espada de Marechal Deodoro”.

O governo do império de há muito proibia militares de se envolverem em assuntos políticos, alguns oficiais que se manifestaram em público foram punidos. Surgiu aí a Questão Militar, contrapondo militares e o governo. Marechal Deodoro da Fonseca, comandante do Exército e Governador em exercício do Rio Grande do Sul, não somente apoiou seus irmãos de caserna como também propiciou um encontro, em sua área, para que oficiais se reunissem e se manifestassem.

Ante a preocupação do Imperador D.Pedro II o dirigente do Gabinete Ministerial, barão de Cotegipe, disse-lhe para ficar tranquilo pois sabia como se conquistavam generais. Cotegipe ofereceu a Deodoro os seguintes presentes: título de Visconde de alagoas, uma cadeira vitalícia no Senado e a liberação, com ajuda de custo, de um generoso abono extra no soldo do Marechal.

Deodoro da Fonseca respondeu ao seu interlocutor com uma carta, direta e objetiva, publicada nos jornais da época em que dizia: Sr Ministro, A minha resposta é que as cadeiras do Senado devem ser oferecidas aos políticos e aos que se julgarem aptos para serem legisladores e que, quanto ao título nobiliárquico, me contentarei com a nobreza de sentimentos. Quero ser simples soldado e, portanto, recuso uma e outra coisa, preferindo antes de tudo ficar do lado dos meus irmãos de armas.”  Sobre o abono oferecido concluiu: “minha família sou eu mais minha mulher. Dispenso as ajudas de custas. Basta-me o soldo a que por lei tenho direito.”

Dois anos após este episódio a espada do monarquista convicto Marechal Deodoro da Fonseca erguia-se em prol da proclamação da República, derrubando o combalido império brasileiro. Este veterano da Guerra do Paraguai, amigo pessoal e protegido do imperador, recusou vantagens, benefícios e suborno para manter-se fiel às suas convicções, lições que em muito deveriam ser hoje também reproduzidas.

Anderson Fonseca

Professor de Direito Constitucional. Advogado. Especialista em Comércio Exterior e ZFM

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