As recentes enchentes que assolaram cidades do Rio Grande do Sul (RGS) expõem, mais uma vez, a vulnerabilidade do Brasil frente a esse fenômeno climático recorrente. Enquanto prestamos nossa solidariedade aos irmãos gaúchos, é crucial refletir sobre a necessidade de mudar de atitudes, aprimorar a prevenção e mitigação dos impactos das inundações. Esta novela trágica se repete de tempos em tempos, com sete capítulos que assistimos de forma angustiante ao longo do tempo.
Desde tenra idade, presencio com profunda tristeza as enchentes ceifarem vidas que poderiam ser poupadas se, enquanto nação, prestássemos mais atenção à preservação ambiental e à proteção das comunidades vulneráveis. Esse drama se repete ciclicamente, com um enredo trágico que se desdobra em seis capítulos familiares:
C1) Cientistas e técnicos alertam as autoridades
Os alertas estão nos relatórios dos cientistas, pesquisadores e técnicos do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), da Organização Meteorológica Mundial (OMM), do Escritório das Nacões Unidas para a Redução de Risco de Desastres (UNDRR), do Programa da ONU para o Desenvolvimento (PNUD).
C2) As autoridades ignoram os alertas e as recomendações
Apesar de existirem diagnósticos, recomendações e modelos de planos para prevenir ou mitigar os efeitos de catástrofes climáticas, a maioria dos governantes historicamente tem ignorado esses alertas, perdidos em disputas políticas e interesses de curto prazo.
Um exemplo emblemático é o projeto “Brasil 2040” <https://bit.ly/3ym30R5>, realizado entre 2013 e 2015 por um grupo de cientistas, que previa períodos de secas no Norte e chuvas extremas no Sul até 2040. Encomendado pela extinta Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) por R$ 3,5 milhões, o projeto foi interrompido após troca de comando na SAE, e seus documentos foram removidos dos sites oficiais <https://bit.ly/3QWFfWd>.
Infelizmente, o Plano Nacional de Adaptação à Mudança Climática é superficial <https://bit.ly/4boElKz>, não foi construído com os municípios e não incorporou o rico conteúdo desses estudos. Porém, o resumo executivo e os produtos 1 e 2 do “Brasil 2040” podem ser acessados pelos sites <https://bit.ly/3VamT6E, https://bit.ly/3wVkcwm, https://bit.ly/3V7ektp>, os quais contém recomendações que devem ser transformadas em programas e projetos concretos pelas autoridades, especialmente das regiões com maior risco de vulnerabilidade.
C3) As cidades estão despreparadas e seguem destruindo
Apesar de 1/3 de nossas cidades terem risco para desastre climático <https://bit.ly/4bou4he>, maioria (68%) não está preparada para enfrentar eventos climáticos extremos <https://bit.ly/3yCj6pL>, o que reflete a ineficácia do Plano Nacional de Adaptação à Mudança Climática.
Para piorar, continuamos fazendo mau uso das terras e de suas florestas ao longo do tempo. Para exemplificar, usando o caso da Região Sul, o relatório Anual do Desmatamento no Brasil, publicado pelo MapBiomas <https://bit.ly/4dSnyks> revelou que em 2020, houve um aumento de 150% no desmatamento nesta região em relação a 2019, tendo como os grandes vilões os estados do Paraná (59%), RGS (23%) e Santa Catarina (18%). No RGS, as cidades que mais devastaram foram Piratini (187ha) e Passos Maia (166ha), não é atoa que estão entre as mais alagadas. Além disso, sabemos que devastadores do RGS têm migrado para a região Norte, onde reaplicam seus modelos para colocar arroz, gado e soja.
C4) As enchentes acontecem e políticos aparecem
Sem planos adequados para prevenir ou mitigar os desastres climáticos, aliado às ações contínuas de degradação ambiental, quando as enchentes ocorrem, o resultado é o que presenciamos: vidas ceifadas, patrimônios destruídos e, só então, essas tragédias passam a ser foco diário da imprensa. Ai, os políticos se apressam em sobrevoar as regiões, exibindo uma aparente preocupação. Pressionados, passam a adotar medidas reativas em prol da população atingida, sempre de forma tardia e emergencial.
C5) o momento da solidariedade
Com a situação fora do controle, vem a solidariedade, iniciando em nível local, depois regional, nacional e internacional.
C6) o momento da contabilidade dos estragos
No caso do RGS, o último balanço publicado no dia 18/05/24 aponta R$ 9,6 bilhões de prejuízos com 461 municípios afetados <https://bit.ly/3wGFlKR>.
Por fim, chega o último capítulo: o período de reconstrução, até que uma nova crise se avizinhe. Depois que a emergência passa, inicia-se a recuperação, mas infelizmente, a vida retoma seu curso habitual, sem que as lições se convertam em políticas públicas e projetos concretos, incorporados ao próprio processo de reconstrução. Falta uma mudança efetiva de atitudes por parte de empresários, políticos e da população em geral. É por essa razão que essa novela trágica volta a se repetir, percorrendo mais ou menos os mesmos sete capítulos já citados.