Na Roma dos Césares, contam os historiadores, havia noventa e cinco escravos para cada cinco homens que acreditavam ser livres. Se remetermos aos dias atuais essa assertiva, diríamos que os “césares” do 3.° milênio mantêm não só noventa e cinco, mas uma infinidade de miseráveis por homem que acredita ser rico.
Estarrecedora a notícia da trágica morte por soterramento do menino que catava restos de comida numa lixeira de nossa cidade. Lembrei-me, de imediato, do “quadrupedum fere cibus”(comida quase de quadrúpedes), que Plínio denominava, a época de Cristo os pães de cevada, inferiores aos de trigo. Os pães de cevada foram alçados à imortalidade na Bíblia por terem sido coadjutores no milagre da multiplicação dos pães. No caso da lixeira e do menino, o alimento que buscava era não só de quadrúpede, mas também de vermes e de aves de rapina. Era babugem. Quanto a nós manauenses, somente nos revoltamos pelo ineditismo do fato, porque a morte dramática numa lixeira ainda não se tornou uma rotina. Sim, porque todos sabem dessa legião de famílias e suas crianças disputando com os animais restos e carniça. Mas essa visão passou a ser um hábito. Um perigoso hábito.
Como o daquela serraria localizada nas imediações do bairro de Educandos, exalando odor insuportável num grande raio de ação. Advindo o mau cheiro de uma espécie inferior de madeira que o vulgo chama de louro. As centenas de pessoas que moravam nos arredores cansaram de reclamar. A certeza da impunidade abrandou-lhes os ânimos. Acostumaram o olfato. Ao cheiro terrível do louro.
São oitocentos milhões de seres humanos sofrendo de fome na Terra, dizem os organismos competentes como a F.A.O cujo lema é Fiat Panis (faça-se o pão) e afirmam que o Planeta, nós amazonenses atualmente sofremos grande estiagem kms de terra até chegar ao rio. Os peixes muitos morrem porque querem saída pelos rios e não podem faze-lo, pode oferecer a cada um a ração necessária de alimentos. Os mais atingidos pela fome são os países em crise política e guerras. Os outros são países do terceiro mundo, cuja politica friamente calculada faz escoar por outros canais os recursos públicos destinados à alimentação.
Como reflexão, é bom rememorar que o direito à alimentação é um dos princípios fundamentais da Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948). Não basta eliminar os lixões! Não basta retirar as crianças do local. Não basta dar o peixe (protecionismo e paternalismo), mas ensinar a pescar e… indicar o acesso ao lugar da pesca (geração de empregos).
Na Manaus-do-eu-menina havia uma pobreza digna. As famílias tinham seus direitos humanos assegurados e uma vida social decente. Os mais abastados financeiramente (com raras exceções)não tinham aquela ânsia irrefreável de passar por cima dos outros, na trilha canibalesca do sucesso pessoal. Não possuíam como prioritário o ídolo do lucro, do poder, impulsionando mecanismos políticos e econômicos a originar a miserabilidade do povo. Havia respeito àdignidade do outro. Éramos um povo naturalmente ético. E não sabíamos!
E hoje, que tanto se fala em resgate da ética, recordamos que nossa infância não possuiu a infame dieta do lixo. Nossa dieta era a da solidariedade. Um homem valia pelo que era. Não pelo que tinha. O eu, sempre o eu, procurando a própria vantagem, criou miseráveis em série, pondo em questão o valor do progresso. Hoje, o valor espiritual é peso-morto. Em cifrões é medido o valor de cada um. Éramos éticos. Segue-se no agora a dieta do lixo.
CARMEN NOVOA SILVA, é Teóloga e membro da Academia Amazonense
de Letras e da Academia Marial do Santuário Nacional de Aparecida-SP