20 de outubro de 2024

Resistência de Manaus

Ernesto Sábato, escritor argentino, premiado autor de “Sobre heróis e tumbas”, acaba de lançar um livro intitulado “A Resistência” que nada mais é do que a sua dor ao olhar o passado não muito distante de sua terra e perceber tantas perdas, entre elas a dos valores que conferiam dignidade ao ser humano. Não consiste num catálogo de males em tons apocalípticos, mas num testamento ideológico. Evidencia a necessidade do carisma do profeta cotidiano e contemporâneo para gritar e conscientizar os indivíduos de todas as injustiças, de todos os males. E a isso ele aliou um texto testemunhal na sua trajetória de vida, apontando as verdades sem véus. É jamais possuir a Vocação de “Bibelot” frente às misérias humanas. Isso me lembrou os idos de 1976, quando era articulista de um jornal local. Escrevi certo dia, um artigo sobre “O Mártir da Independência”, o Tiradentes. O redator-chefe, aconselhou-me que não falasse sobre assunto tão “fustigante”, mas sobre coisas amenas, ou seja, “futilidades”. Era o superficial no lugar do substancial. Aquela época, era compreensível a apreensão do editor. Estávamos ainda em regime ditatorial dos militares. A “abertura” política era ainda uma tênue esperança. Sim, a imprensa manauense praticava ginástica mirabolante para driblar a censura. O jornal em que colaborava havia sido lacrado por diversas vezes. Possuía articulistas de renome. Anthistenes Pinto, Farias de Carvalho e Fábio Lucena praticavam esse contorcionismo jornalístico e, muitas vezes, escreviam amenidades para agradar ao rei. Na antiguidade, os tiranos mandavam cortar a língua dos mensageiros que traziam más notícias. Aquele tempo, eram cortadas as vozes pela censura fatal. Corriam até o risco de ficarem bloqueados em si mesmos como o fato verídico, acontecido há pouco tempo, daquele contorcionista do Circo Nacional da Irlanda, que, de tanto abusar de seu talento de ginasta, ficou interditado em si mesmo, tendo de pedir socorro a fim de retirarem suas pernas fincadas atrás das omoplatas. No entanto, aqueles jornalistas com letra maiúscula eram também exímios homens de letras e sabiam manipular as palavras. Essas, mesmo que mascaradas, conservavam todo o seu real significado. Era a Resistência de que Sábato fala. A democracia, hoje, permite-nos o falar sem muros ou fossos. Por isso, quando entrevistada pela TV/Amazonas em julhos passadissimos, disse que, embora não haja atualmente ditadura, existem certos políticos que mantêm a postura de estátua de pedestal. Colocando-se no alto como deuses, a fim de que nenhum mortal ouse tocá-los. No momento de agir em favor do povo que os elegeu sustentam a imobilidade e a frieza das estátuas. Eis um dos grandes demônios da vida humana: a autodivinização. É a vocação oculta de ditadores que os homens levam no peito e que só é aflorada quando, em pedestal, esquecendo-se da própria estatura Mas o meu maior receio é que os acólitos e servis lhes tecam roupas e mantos invisíveis e os convençam com bajulações de que o traje é digno de realeza. O meu medo é que as “amenidades” toldem na classe política o senso crítico e não permitam, como na fábula, ver que o rei está nu. Diante de toda a miséria degradante que aí está. Do livro Canção a Manaus, que agora apresento, é composto por alguns artigos jornalísticos pinçados dentre outros tantos publicados na imprensa manauense. “Canção a Manaus” é nada mais nada menos que a Resistência – cidadã. É um cantar de luta e esperança contra toda a desesperança, mesmo que seja, conforme o salmista, “… como ave solitária no telhado…” Alguém haverá de escutar!

* Salmo 101-da Bíblia Sagrada (súplica em favor do povo pela restauração da nação)

 

Redação

Jornal mais tradicional do Estado do Amazonas, em atividade desde 1904 de forma contínua.

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