23 de novembro de 2024

1988

Anderson F. Fonseca. Professor de Direito Constitucional. Advogado. Especialista em Comércio Exterior e ZFM. IG: @anderson.f.fonseca

O ano de 1988 foi um ano atípico, na década chama de “perdida” em vista do desemprego crescente, a estagnação econômica levando a perda do poder de compra da população, o ano trouxe alguns vislumbres de esperança, em última decisão direta do Campeonato Carioca contra o Flamengo, o Vasco, sagrou-se campeão, amantes da Fórmula 1 vibraram com o primeiro título mundial de Ayrton Senna após vencer o Grande Prêmio do Japão, Aurélio Miguel trouxe a primeira medalha de ouro para o Judô nas Olimpíadas de Seul,  o Brasil inteiro se perguntava “quem matou Odete Roitman”? no folhetim “Vale Tudo”, o fenômeno televisivo “TV Pirata” que revolucionou a forma de se fazer humor no país teve sua estréia, “O Último Imperador” conquistava a estatueta de melhor filme na cerimônia do Oscar daquele ano.

Ano também marcado pelo centenário da abolição da escravatura no Brasil, fundação do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), falecimento do apresentador Chacrinha e do ator mexicano Ramón Valdés, o “Seu Madruga” do seriado “Chaves”, a extinta União Soviética conquistou a medalha de ouro no futebol em sua última participação em olimpíadas, a prata ficou com nosso país, o Republicano George H.W.Bush é eleito presidente dos EUA, sai das linhas de montagem o último exemplar do Volkswagen Passat, fecha-se o ano com o atentado Lockerbie, na Escócia.

Em meio a tantas revoluções por minuto, uma que nos é bastante afeta teve seu início dois anos antes, em 1986 dois eventos tomaram conta da discussão acerca da então recém instalada Assembleia Nacional Constituinte, conforme noticiava o jornal A Folha de São Paulo em 17 de junho daquele ano, quatro professores norte-americanos participaram de palestras e debates na Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo), sobre os temas: “Estrutura da Federação”, Educação e Constituição”, “Poder Judiciário” e “O Conteúdo social e econômico da Constituição”.

Declararam os visitantes que apesar de não possuírem um padrão de Constituição  sugestões foram postas a auxiliar o procedimento constituinte brasileiro,  afirmou o professor Covey T.Oliver que “o principal é que o Brasil, assim como outros países, se esforce para garantir a independência do Poder Judiciário”, para o professor Benjamim Shieber, “o mais importante é ter em mente os princípios básicos que nortearam a Constituição: democracia, igualdade e Liberdade”.

Já no mês de agosto de 1986, em Belém, a 11ª Conferência Nacional da OAB, sob a Presidência de Herman Assis Baeta trouxe como tema principal a “Constituição” naquela quadra histórica havia uma preocupação da Ordem com a organização da Assembleia Nacional Constituinte, eram outros tempos, outros costumes para a advocacia.

A imperiosidade de termos uma Carta Constitucional verdadeiramente democrática foi o norte do evento, a “Declaração de Belém” destacou as reivindicações por Direitos Humanos, função social da propriedade, reforma agrária, universalização do ensino público, a democratização da justiça, o salário mínimo capaz de suprir as necessidades básicas do cidadão, o livre exercício do direito de greve, só pra citar alguns dos temas que posteriormente viriam a compor o projeto e que acabaram inseridos no instrumento final.

Tudo isto culminou em um processo constituinte desordenado em 1988, entre os dias 7 e 13 de janeiro daquele ano, abriu-se prazo para apresentação de emendas ao Projeto de Constituição, ao que foram recebidas 2045 emendas, entre as quais 29 coletivas (apoiadas por 280 assinaturas), isto em um anteprojeto que contava com 501 artigos, sendo 436 de disposições permanentes e 65 de normas transitórias, ampliando-se ao final para 20.770 emendas sugeridas.

Bem a propósito ao que parece esta sanha de emendar a Constituição persiste desde seu nascedouro, hoje acrescem à Constituição cidadã, mais de 130 emendas, algumas desnecessárias porque passíveis apenas de uma correta interpretação, outras vieram de interesses imediatos, localizados, e outras, ainda, dificilmente se justificam relativamente aos valores que devem conduzir as ações político-jurídicas, as necessidades de nosso país.

Inobstante seu início tortuoso e debates que remontam a dois anos prévios a sua promulgação em 5 de outubro de 1988 ganhamos nossa oitava Carta Constitucional, cheia de esperanças, resultado da mais ampla negociação da história das constituições brasileiras, absorvendo pressões, intenções políticas, econômicas e sociais, misturando diversos partidos políticos e diversas ideologias, obtendo maioria em 559 constituintes, com grandes avanços nos direitos sociais e individuais embora de uma essência conservadora.

Constituição de todos, da primavera de um novo Brasil iniciado após o regime militar, naquele instante com várias partes ainda a serem regulamentadas contudo nada daquilo que necessitava ser regulamentado poderia se afastar um milímetro que fosse do seu texto, a lei de todas as leis do país, um livro quase sagrado, a bíblia do Estado Democrático de Direito, valendo de fato na medida que o povo dela tomasse conhecimento, cobrando e exigindo o que nela está previsto.

Nestes trinta e cinco anos após o cinco de outubro de 1988  carecemos refletir se a Carta de tantas esperanças está sendo usada para nos aproximar ou afastar dos ideais democráticos por ela defendidos, se os princípios essenciais da democracia não estão sendo subvertidos em nosso tempo, princípios como: o cidadão comum gozar a plenitude de direitos fundamentais, a essência da democracia baseada no compromisso entre ideias opostas, uma alta estima do valor da personalidade humana e mais além se há o encontro de soluções pacíficas para diferenças de opinião dentro do Estado, como resultado da discussão e do acordo.

Se é certo que não há Constituição perfeita a do Brasil foi fruto de lutas, aprovada em plenário, em turno único, votação global, a redação final do projeto transformada em Constituição com 315 artigos, 245 disposições permanentes e 70 transitórias, dentre estas importante que se lembre a previsão da manutenção da existência do modelo Zona Franca, veio para se virar uma página histórica importante em nosso país.

Em tempos de relativismo, ativismo e judicialização exacerbada importa lembrar daquele 1988, do nascedouro para que nossos atuais desafios, liberação das drogas, aborto, casamento entre pessoas do mesmo sexo, liberdade de expressão, Estado laico, limites do Judiciário, dentre tantos outros, sejam o reflexo do que o consituinte originário vislumbrou para as gerações do futuro, um país onde reina a verdadeira democracia, com plenitude de entendimento que Poderes da República são independentes e harmônicos entre si mas que o Poder, este uno e indivisível, emana no povo e em seu nome será exercido. 

Anderson Fonseca

Professor de Direito Constitucional. Advogado. Especialista em Comércio Exterior e ZFM

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