Breno Rodrigo de Messias Leite*
Não é de hoje que as grandes potências direcionam os seus interesses estratégicos para o subcontinente sul-americano. Diferente de outras zonas do mundo, a América do Sul é uma potência inigualável em recursos naturais. A abundância tamanha de recursos naturais pode ser traduzida em números superlativos na produção agrícola, na quantidade de metais raros, na extensão das florestas tropicais, na geografia hídrica dos rios navegáveis e dos aquíferos, nas reservas petrolíferas prospectadas, na posição continental bioceânica. Esta é a essência do equilíbrio sul-americano: o seu potencial bioeconômico.
O subcontinente sul-americano possui também a maior reserva alimentar do mundo – o que já torna a segurança alimentar de toda a humanidade algo possível – e, logo mais, graças a descobertas recentes, terá as maiores reservas petrolíferas do mundo. A combinação possível de segurança alimentar e de segurança energética pode transformar o subcontinente inteiro – se não forem tomadas as devidas medidas estratégicas – num alvo fácil de ameaças externas, como: os constrangimentos multilaterais sobre os passivos socioambientais e as mudanças climáticas; os mecanismos de sanção econômica contra governos e autoridades; e, em última instância, a possibilidade de agressão militar das grandes potências globais, notadamente os Estados Unidos, os países europeus e a China. Jamais podemos nos esquecer da advertência realista de Henry Kissinger a respeito dos dois assuntos: “controle o petróleo e controlará as nações; controle o alimento e controlará as pessoas.”
O conflito militar na Ucrânia descortinou o véu da falácia liberal segundo a qual a ordem internacional havia superado definitivamente a sua ambição bélica, o seu momento de guerras com batalhas de alta intensidade, as guerras de anexação. O que se observa, até agora, no conflito na Ucrânia, é a velha guerra de atritos, o emprego robusto de fogos, o combate homem a homem etc. A guerra tal como é e como sempre será. Em suma, nada de novo no front.
A apoteose dos recursos naturais e a condição insular não podem esconder um fato indelével: salvo raras exceções (a Colômbia recebe ajuda militar dos Estados Unidos e a Venezuela recebe da Rússia), os países sul-americanos ficaram para trás em suas políticas de segurança internacional e de defesa nacional. Por não nos envolvermos em guerras de grandes proporções no continente –a última foi exatamente a Guerra do Paraguai, na segunda metade do século 19 –criou-se a expectativa totalmente ilusória de que os países seriam poupados de qualquer ameaça militar extracontinental. Tal ilusão está enraizada historicamente na predominância dos Estados Unidos na proteção intercontinental, conforme anunciada na Doutrina Monroe e em tantas outras alianças firmadas e reafirmadas ao longo do tempo sob a égide do espírito de fraternidade do interamericanismo. Afinal de contas, eles dizem: “América para os americanos”.
Mutatis mutandis, o declínio relativo dos Estados Unidos que se concretiza diante dos nossos olhos não pode mais garantir a necessária segurança e defesa dos países do continente na sua totalidade. O que aconteceu no dia 24 de fevereiro de 2022 é a prova cabal e conclusiva de que os países não podem contar única e exclusivamente com a ajuda de terceiros em cenários de conflitos internacionais multidimensionais. Precisam contar, isto sim, com as próprias forças de defesa nacional e com um sofisticado esquema de ação diplomática nas relações bilaterais e multilaterais. A “pólvora e a saliva”, combinadas, são condições necessárias, mas não suficientes, para a obtenção da paz e segurança.
É precípuo que as nações do subcontinente transformem a retórica em ação política e retomem urgentemente os diálogos acerca da criação de um sistema sul-americano de defesa. A formação da União de Nações Sul-Americanas (UNASUL) foi um passo importante neste sentido. A UNASUL permite que os países troquem experiências de campo, firmem parcerias estratégicas, formalizem acordos na área de defesa e de segurança. A UNASUL pode ser um instrumento efetivo de cooperação e de alinhamento estratégico no processo de reconstrução do sistema sul-americano de segurança e de defesa.
Cabe ao Brasil, portanto, o papel de liderança do sistema sul-americano. Sem alimentar rivalidades atávicas ou ressentimentos históricos, o Brasil poder assumir, sim, um papel internacional renovador na reconstrução do mundo –passada a Guerra na Ucrânia. O cenário do mundo multipolar é uma oportunidade inédita para um reposicionamento estratégico do Brasil e dos países sul-americanos no novo concerto internacional.
*é cientista político