(impressões apaixonadas sobre a cidade que vi)
*Carmen Novoa Silva
A primeira vez que vi a Avenida tinha eu, uns cinco anos de idade. A década era a de cinqüenta. Como um recém-nascido a se deslumbrar com a luz primeira, assim descobri que na Avenida existiam mais teatros que em Paris, (para mim o Teatro Amazonas de tão grandioso, equivalia a dezenas dos da “Cidade Luz”) e que os enfileirados e artesanalmente podados benjamins,fincados nos dois lados e percorrendo toda a sua extensão,davam-lhe ainda mais o ar dos “boulevards” parisienses. Desde então, a Avenida ficou em meu coração.E certo que possuíamos outras avenidas importantes como a Sete de Setembro,a Getúlio Vargas, a Joaquim Nabuco, no entanto a que mais se destacava era a Avenida Eduardo Ribeiro. Esse, seu nome completo. Mas para nós, nascidos na Manaus-das-angélicas,ali era apenas a Avenida. Com letra maiúscula. E tinha caráter de monumento. Era substantivo comum, mas pela força de sentimentos simples e dignos adquiriu identidade própria, anulando o nome do homenageado. Era a Avenida, por antonomásia. E todas as festas e-comemorações convergiam para si. Seu casario, tinha a fisionomia dos que passaram pela riqueza excessiva e de repente tudo perderam, no entanto sabiam conservar com dignidade uma índole nobre a inspirar o respeito tanto dos habitantes quanto dos forasteiros. Seu comércio, levava as marcas do fausto da falida economia da borracha, mas teimava em não demonstrar fraqueza nos anos de estagnação. Tinha incrivelmente um otimismo profético, (quiçá antevendo outros anos de ouro) repetindo a Manaus como Jacó a Deus no Gênesis: “Não te deixarei até que me bendigas”. O que sentimos nos anos cinqüenta foi o Silêncio. O Silêncio e a Solidão.Encravada em plena selva amazônica, Manaus fora esquecida pelo mundo e pela nação.Somente a espèrança, “secreta voz da imoralidade”, conferia a necessária força a reerguer os caídos. Contávamos apenas uns com os outros. Nós, somente nós e a grande Avenida. Ela, a síntese de toda a economia, de toda a sociedade, de toda a religiosidade, de todo o lazer, de toda a justiça. Sim, ao lado do Teatro, num palácio reinava a Justiça que à Avenida um dia deu a sentença de ser tão eterna quanto o ar e a água do universo. Em seu ponto mais alto erguia-se o Instituto de Educação,ladeado pelo Instituto Benjamim Constant. Ali, continuava-se a transmissão dos ensinamentos. A Avenida tinha a cátedra para indicar que a educação e cultura eram o sangue imprescindível nas veias de um povo desfalecido. E pelas adjacências vicejavam as livrarias: “Clássica”, “Acadêmica”, “Escolar”,“Brito”,“Colegial”…Nos anos cinqüenta, contávamos apenas uns com os outros. Nós,somente nós, e a grande Avenida. Esta ditava que a religiosidade da terra, essa força incalculável que se expressa em silêncio,deveria ter seu marco na Praca do Congresso, (assim denominada em homenagem ao Congresso Eucarístico ali acontecido em 1942)e sua apoteose na Catedral e Largo da Matriz,onde as andorinhas voavam em bandos por entre o verde, campanários e sons de um Angelus secular. Tudo isso surgia na Avenida! E o relógio, o antigo Relógio Municipal, imponente compilando décadas em voltas intermináveis,dizia de uma gente heróica que sob a benção das horas soube transformar os áridos momentos em anos de esplendor. Enquanto os bondes morriam numa paisagem em preto e branco, os elegantes cinemas “Avenida”e “Odeon”apontavam com seus filmes fantasiosos, para um futuro em “technicolor”. A Avenida ficou em meu coração,no vaivém das pessoas rumando ao “Roadway”, em passeios dominicais.Tudo para ver o Negro em cheias e vazantes,navios chegando e partindo e o piedoso dormir do sol oficiado pelos acenos de lenços brancos soltòs no ar… Descer e subir a Avenida… Eis a grande conquista! Os famosos, (mísses, políticos, artistas e esportistas) tinham o direito de usá-la em carros abertos ou alegóricos, sob o aplauso da população. Quanto a nós, mortais
comuns, descíamos e subíamos a Avenida a pé e devagar, pelas calçadas de pedra de Liós.Levávamos apenas o riso, a graca e um enorme sol escondido nas mãos. Na Manaus-das-angélicas,eram de propriedade exclusiva da Avenida, os carnavais e o desfile de Sete de Setembro: Batalhas de confete,rainhas,mascarados, lança-perfume e os clarins dos bailes a rigor do Ideal, Nacional e Rio Negro; Balizas,acrobacias, bandas,passos cronometrados,fardas de gala e “rataplans” eram bens particulares e inalienáveis do verbo amar,conjugado no imperativo do coração. Na memória olfativa-território de exílio das coisas irretornáveis-surge de repente o cheiro dulcíssimo dos caramujos da “Confeitaria Avenida”, que um dia o Criador levou de volta ao paraíso. A Avenida era o alfa e o ômega. O corpo e a alma. O ar dos pulmões. O princípio e o fim de nossas histórias de vida. O fato é que irmanados pela solidão geográfica, tornamo-nos gigantescos. Como a pequena bola de neve que cresce assustadoramente ao descer a montanha. Éramos gigantes na solidariedade,na criatividade, no sorriso estirado ao visitante, o que nos valeu o epíteto de Cidade-Sorriso. Estávamos sós.Contudo felizes. Tínhamos como monumento,a Avenida…
CARMEN NOVOA SILVA, é Teóloga e membro da Academia Amazonense de Letras e da Academia Marial do Santuário de Aparecida-SP