Tanto no discurso de posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva quanto no de seu chanceler, Mauro Vieira, em janeiro de 2023, havia uma preocupação uníssona: a retomada da agenda internacional do Brasil. A reconstrução da política externa brasileira — diziam os estrategistas do recém-empossado governo — tinha como propósito superar o imobilismo e o isolacionismo impostos pelas principais potências ao governo anterior, do presidente Jair Bolsonaro, e reposicionar o Brasil na arena internacional.
Em certa medida, a comunidade de analistas de assuntos internacionais considerava essa aposta coerente, parecendo, de fato, repetir, em novos termos e sob novo cenário, a bem-sucedida estratégia de política externa Ativa e Altiva, construída ao longo do período 2003-2010 por Lula, Celso Amorim e Samuel Pinheiro Guimarães.
Entretanto, ao longo de vinte anos — de 2003 a 2023 —, a política internacional passou por profundas transformações. No início da década de 2000, a grande preocupação da agenda global era a consolidação do multilateralismo, a expansão da democracia como fenômeno universal e a abertura dos mercados globais para as principais rotas comerciais e financeiras.
Foi nesse contexto que Lula se tornou uma liderança global reconhecida por seus pares.
Todavia, o início da presente década parece ser o “cemitério” da ordem liberal global. O otimismo daquele período se esvaiu e foi substituído por um realismo doloroso, imposto pelas potências globais.
A ascensão de nacionalismos étnicos, religiosos e seculares trouxe novos significados para a luta ideológica convencional — direita vs. esquerda, conservadores vs. progressistas — colocando em destaque os valores nacionais, a segurança e a defesa nacional. Essas questões são especialmente visíveis em regiões de conflito, como o Leste Europeu, o Leste Asiático, a África e o Oriente Médio.
Outro ponto central é a consolidação de regimes autoritários em diversas partes do mundo. A normalização e legitimação desses governos na comunidade internacional são passos decisivos para a manutenção da instabilidade no regime internacional. Ao contrário do que muitos imaginam, lideranças autoritárias frequentemente causam insegurança regional e tendem a ser mais beligerantes.
A guerra na Ucrânia abriu uma nova fissura na política internacional. A retomada de dinâmicas geopolíticas, geoeconômicas e geoestratégicas indica que estamos vivendo uma nova era — uma fase de tensões, conflitos e alianças entre potências e blocos de poder.
A máxima hobbesiana “bellum omnium contra omnes” (guerra de todos contra todos) parece voltar a ser a lógica predominante no sistema internacional.
Diante desse cenário, tentamos responder a três questões fundamentais:
- Qual será o papel de Lula na condução da política externa brasileira diante dos conflitos internacionais multidimensionais?
O papel de Lula na condução da política externa tem sido marcado por uma abordagem multilateral e pelo foco no fortalecimento das relações globais no eixo Sul-Sul, ou Sul Global. O presidente busca reforçar a presença do Brasil em fóruns internacionais como a ONU, a Organização Mundial do Comércio (OMC) e o G20, defendendo uma ordem global mais justa e uma maior representatividade dos países em desenvolvimento nas decisões globais. Além disso, Lula advoga por reformas em instituições globais, sobretudo o Conselho de Segurança da ONU.
O governo também tem como prioridade a integração regional, reatando laços com os vizinhos sul-americanos e promovendo o Mercosul e a Unasul. (Algo que até o momento está limitado à retórica presidencial). Há uma clara política Sul-Sul e cooperação com países emergentes, como China (a líder inconteste do bloco), Rússia, Índia e África do Sul, através do BRICS+. Outro foco é a agenda ambiental, especialmente em relação à preservação da floresta amazônica e ao cumprimento de metas de redução de emissões de carbono.
No que diz respeito a questões geopolíticas, Lula adota uma posição equilibrada, de neutralidade pragmática, evitando alinhamentos automáticos com qualquer bloco geopolítico e buscando manter o Brasil como mediador em conflitos internacionais.
- O Brasil pode perder posição nesta nova competição global?
Sim, o Brasil pode perder espaço na nova competição global, a depender de sua capacidade de adaptação às rápidas transformações econômicas, políticas e tecnológicas. O mundo está passando por mudanças disruptivas, como a transição para economias mais sustentáveis, a economia das IAs, a ascensão de novas potências globais e a competição por recursos e mercados.
O Brasil possui vantagens significativas, como a abundância de recursos naturais e uma posição geopolítica estratégica. Certamente, o futuro do país dependerá de como essas vantagens serão geridas e de sua habilidade para se posicionar adequadamente na nova ordem mundial.
- A estratégia de equidistância pragmática pode ainda trazer ganhos relativos para a inserção internacional do Brasil?
Sim, a estratégia de equidistância pragmática, e suas variantes, pode continuar trazendo ganhos para a inserção internacional do Brasil, desde que seja conduzida de forma eficaz e adaptada ao cenário geopolítico contemporâneo.
Por definição, a equidistância pragmática, conceito de política exterior formulado e aplicado por Getúlio Vargas na década de 1940, refere-se à capacidade do Brasil de manter relações construtivas e equilibradas com diferentes blocos geopolíticos, sem se alinhar automaticamente às grandes potências ou se envolver diretamente em confrontos.
Essa estratégia permite que o Brasil mantenha uma posição autônoma, preservando a liberdade de escolher suas alianças com base em seus próprios interesses nacionais. Essa flexibilidade pode ampliar o campo de ação do país, fortalecendo sua imagem como um ator independente, capaz de dialogar com potências ocidentais, emergentes como China, Rússia e Índia, e países do Sul Global.
Em suma, a política externa de Lula, apesar de enfrentar um cenário internacional significativamente mais desafiador do que em seus mandatos anteriores, mantém potencial de reposicionar o Brasil como um mediador global e um defensor do multilateralismo. A estratégia de equidistância pragmática, se aplicada de forma inteligente e sensível às novas realidades do sistema internacional em crise, pode continuar gerando ganhos importantes para a inserção internacional do país. No entanto, o sucesso dessa abordagem dependerá da capacidade do governo de se adaptar às rápidas mudanças geopolíticas, mantendo, assim, sua relevância e autonomia em um mundo cada vez mais fragmentado, competitivo e conflitivo.
*é cientista político