Breno Rodrigo de Messias Leite*
A passagem de Henry Kissinger no dia 29 de novembro despertou dois tipos de reações da opinião pública mundial. Por um lado, a de seus críticos coléricos, que o viam como um sanguinário representante do imperialismo norte-americano; causador de guerras e genocídios no sudeste asiático; idealizador e planejador dos regimes militares na América Latina. Por outro, a de seus devotos, que o viam como um amante da paz, da democracia e dos direitos humanos; o principal responsável pelo fim da Guerra do Vietnã e do processo de paz lá iniciado; sem esquecer-nos também da diplomacia triangular e do estreitamento da relação EUA-China.
Um exame correto do homem e do estadista precisa exprimir necessariamente todas as contradições possíveis de um homem político que agiu não em nome de uma nação, mas sim no de uma superpotência. A ação concreta das superpotências realiza-se no esforço contínuo e permanente de gerenciar o uso da força e a distribuição assimétrica do poder entre os membros da comunidade de nações e das organizações internacionais. Superpotências são egoístas, monopolistas e buscam incessantemente a hegemonia ao conformarem o sistema internacional em seus próprios termos e interesses estratégicos.
A relação de Kissinger com o poder na política internacional é fundamentalmente realista. Toda a construção analítica e empírica do diplomata norte-americano –moldada em torno do realismo neoclássico – aponta para uma ação coordenada das grandes potências nas relações internacionais. Tal como na ascensão das potências do Concerto Europeu, Kissinger advogava em defesa de um sistema estruturado em torno das grandes potências, ou seja, o modelo de hegemonia coletiva aplicado pela ordem vienense de Metternich no começo do século 19 Foi justamente no contexto da Coexistência Pacífica e da Détente, nos idos das décadas de 1960 e 1970, que Kissinger insistiu numa abordagem neobismarckiana para construir a parceria estratégica EUA-China e impor um isolamento tático e momentâneo à URSS.
É notório que as últimas lideranças presidenciais norte-americanas comprometeram e sobrecarregaram a posição hegemônica da nação. O presidente da República Joe Biden dobrou a aposta e acelerou ainda mais o declínio relativo dos Estados Unidos no sistema internacional. Em pouco mais de três anos, os Estados Unidos gerenciaram erraticamente a sua política exterior e potencializaram duas arenas de conflitos multidimensionais.
A primeira arena, a Guerra da Ucrânia, colocou frente a frente a Rússia e a Ucrânia com o apoio militar, logístico e de inteligência da OTAN. Trata-se, até o momento, da maior guerra de atrito na Europa desde o fim da Segunda Guerra. As advertências de Kissinger sobre a questão ucraniana são de 2014, ano da anexação russa da Crimeia, e tocam em um assunto sensível: a Ucrânia não poderia fazer parte da OTAN, mas tão somente da integração regional europeia. Recentemente, em painel no Fórum Econômico Mundial, o velho diplomata defendeu o início imediato das negociações de paz, de um cessar-fogo progressivo e o reconhecimento da Rússia como potência militar e nuclear.
Já em relação à China, Kissinger insistiu na estratégia da parceria com a potência asiática. Os EUA foram os grandes patrocinadores da volta da China à comunidade internacional, em 1971, e desde lá estabeleceram estreita relação de cooperação militar, política e diplomática com o país governado por Mao Tsé-tung. Nas palavras de Kissinger, a escalada do conflito entre as duas potências poderia ter um resultado “catastrófico” para a ordem internacional como um todo. Por este motivo, afirma o diplomata norte-americano, “é impossível suprimir a China. Por isso, é preciso um diálogo constante. Não se deve concordar com Pequim em tudo, mas certamente em um ponto: evitar a guerra”.
Em sua última visita à China de Xi Jinping, Kissinger foi recebido com honrarias de Chefe de Estado. A sua última missão tal como a das décadas de 1970 foi quase secreta. Não sabemos ao certo o que foi negociado, mas sabemos que o presidente Xi ficou muito contente com a sua presença: “Estou muito feliz em vê-lo, senhor”, acrescentando que “nunca esqueceremos nossos velhos amigos e não esqueceremos suas contribuições históricas para desenvolver as relações EUA-China e a amizade entre os dois povos”.
Resultado da missão na China: no dia 14 de novembro do presente, Xi encontrou-se com Biden em Washington. Esta foi a última missão do velho diplomata.
*é cientista político