A vocação do padre Matheus

Em: 1 de agosto de 2022

Os acontecimentos da nossa vida, as coisas que nos afetam, o trabalho ou a falta dele, a fome, a doença, a boa ou a má-sorte, tudo, mas tudo mesmo, é fruto do nosso agir, aconselhava padre Mateus. Nós já não nascemos com o nosso destino traçado, com o dia certo para morrer, por exemplo, com quem vamos casar, se vamos ser feliz ou não, se vamos ter dinheiro ou se vamos comer o pão que o diabo amassou, padre? 

Nenhuma coisa e nem outra, filho! Todo ser humano carrega dentro de si o livre-arbítrio. Podemos ser o que quisermos ser. Podemos ser livres ou escravos. Bons ou mãos. Podemos ser felizes ou infelizes. Verdade, padre? Então eu posso ser Jesus Cristo? Ah, Jesus Cristo você não pode ser. Por que eu não posso, padre? O senhor não disse que podemos ser o que quisermos ser? Verdade, mas Jesus tu não pode ser. Mas por que padre?

Porque ninguém nasce duas vezes, filho! Porque o vegetal não pode ser mineral e o mineral não pode ser animal. Cada um tem a sua sina, a sua missão. Você pode segui-Lo. Você pode copiá-Lo. Você pode imitá-Lo. Mas nunca ser Ele. Assim como ninguém pode ser você. Nunca e ninguém chegará a ser Jesus. Jesus é Jesus, e ponto final. 

É uma pena o senhor me dizer isso, pois eu sempre quis ser Jesus Cristo. Padre, quando eu era pequenino, quando eu estudava o catecismo na escola, a minha professora dizia que as pessoas boas vão para o céu. E ela estava certa, filho! As pessoas boas, quando morrem, vão para o céu. Ao contrário das pessoas ruins. Essas pessoas, quando morrem, vão para o inferno, que é um lugar terrível, onde ficam os pecadores.

De qualquer modo, padre, eu fico aqui pensando: o que leva uma pessoa a cometer um pecado se, de antemão, essa pessoa sabe que será condenado por isso? O vício, a ganância, o poder, o desejo de sucesso a qualquer custo, enfim, um punhado de atos imorais e antiéticos levam as pessoas a cometerem os seus piores erros, os seus piores pecados. Qual é o antídoto para todos esses casos? Ou, o que leva a remissão dos pecados? 

O amor, filho! O amor. Somente o amor. Santo Agostinho, bispo de Hipona, dizia: “Ama e faz o que quiseres. Se calares, calarás com amor; se gritares, gritarás com amor; se corrigires, corrigirás com amor; se perdoares, perdoarás com amor. Se tiveres o amor enraizado em ti, nenhuma coisa senão o amor serão os teus frutos”. Quer dizer, então, que o amor salva? Sim, o amor salva. O amor não só salva como… 

Padre Matheus nem chegou a completar a frase, quando ouviu um forte barulho que vinha do lado de fora da igreja. Alguém havia entrado na sacristia. Ele pulou do confessionário com a bíblia e o rosário em punho, e viu à sua frente um vulto, que ele pensou ser o sacristão Euliene, iluminado pela claridade das velas, que enchiam os corredores da igreja. 

Euliene?  É você? O que você faz aqui essa hora? Aconteceu alguma coisa? O vulto, que não era do sacristão e nem possuía forma humana, arreganhou os dentes e num sorriso satânico, respondeu ao padre Matheus: “-Eu sabia que o senhor é um farsante, que o senhor é um padre comunista”. Não sei do que está falando, o padre Matheus retrucou. “- Estou aqui para desafiá-lo pela posse da verdade”. Claro que está, ironizou o padre Matheus. É sempre a mesma conversa: a mentira é sempre mais sedutora. Você se apresenta sempre como dona da verdade. Mas não passa de uma velha feia, desdentada e muito má. Saí daqui sua besta… 

Nesse instante os confrades do padre Matheus chegaram. Alguém tentou dizer alguma coisa, mas não encontraram palavras. Euliene, que era chegado à meditação transcendental, pediu que todos dessem as mãos e que formassem uma corrente de energia positiva. Todos olharam sério para o sacristão, como se tivessem um pensamento em comum: “De onde ele tirou essa ideia?” Como ninguém tinha uma sugestão melhor, o silêncio tomou conta da igreja e o padre Matheus pode ter uma noite tranquila de sono!

Luís Lemos

É filósofo, professor universitário e escritor, autor, entre outras obras, de "Filhos da Quarentena: A esperança de viver novamente", Editora Viseu, 2021.
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