*Bosco Jackmonth
Convém discorrer sobre a que se refere o título. Diga-se que historiadores estudam o passado não para poder repeti-lo, e sim para poder se livrar dele quando convém. Considere-se, que a história tem o objetivo de nos livrar dessa submissão ao passado. Ao observar a cadeia acidental de eventos que nos trouxe até aqui, nos damos conta de como nossos pensamentos e sonhos ganharam forma – e podemos começar a pensar de modo diferente. Resta, o estudo da história não dirá qual deve ser nossa escolha, mas ao menos nos dará mais opções.
Mas, se a rigor, a história não segue regras estáveis, por que estudá-la? Frequentemente, parece que o principal objetivo da ciência é predizer o futuro. Assim, da mesma forma, espera-se que os historiadores examinem as ações de nossos antepassadas para que possamos aguardar suas decisões sensatas e evitar quem sabe erros. Entretanto, ciência não diz só à previsão do futuro. Estudiosos em todos os campos buscam ampliar nossos horizontes e com isso abrem à nossa frente um futuro novo e desconhecido. Isso é especialmente verdadeiro no que diz respeito à história. Embora historiadores ocasionalmente arrisquem fazer profecias (sem muito sucesso), o estudo da história visa acima de tudo nos tornar cientes de possibilidades que talvez não levássemos em consideração, tal como se anotou linhas anteriores.
Temas tão preocupantes, para abordá-los cabe examinar de perto o mundo no início do século XXI, antes de explorar a agenda humana para as próximas décadas situadas no porvir, traçando a linha de pobreza biológica. Dê-se partida na fome que há milhares se anos é o pior inimigo da humanidade, salvo que está cedendo espaço para a obesidade como causa-mortis. É fato que até recentemente, a maioria dos seres humanos vivia no limite mesmo da linha de pobreza biológica, abaixo da qual as pessoas sucumbem à desnutrição e à fome. Um pouco de azar ou um pequeno erro poderiam facilmente constituir-se em sentença de morte para uma família, ou uma aldeia toda.
Se chuvas pesadas destruíssem a colheita de trigo, ou se ladrões levassem seu rebanho de cabras, você e seus entes queridos poderiam passar fome até morrer. Quando uma seca rigorosa atingia o Egito antigo ou a Índia medieval não raro 5% ou 10% da população perecia. As provisões tornavam-se escassas; o transporte era lento e dispendioso para permitir a importação de comida; e os governos eram fracos demais para salvar a situação.
Consulte-se registros históricos e provavelmente vai-se deparar com relatos terríveis de populações famintas, enlouquecidas pela fome. Em abril de 1694, um funcionário do governo francês na cidade de Beauvais descreveu o impacto da fome e dos cada vez mais elevados preços da comida: o distrito todo estava tomado por “um número infinito de pobres almas, debilitadas pela fome e pela miséria, cuja morte era provocada pela carência total, porque, não tendo trabalho ou ocupação, não dispunham de dinheiro para comprar pão. Buscando prolongar um pouco suas vidas e de algum modo matar a fome, esses desvalidos começaram a comer coisas tão impuras como gatos e carne de cavalos esfolados e atirados em montes de esterco. Ouros consumiam o sangue que escorre quando vacas e bois são abatidos, e os restos que os cozinheiros jogam nas ruas. Outros pobres miseráveis comiam urtigas e ervas, ou raízes e grama, as quais ferviam na água.
Casos semelhantes ocorriam por toda a França. Temperaturas ruins haviam arruinado as colheitas em todo o reino nos dois anos anteriores, de modo que, na primavera de 1694, os celeiros estavam completamente vazios. Os ricos cobravam preços exorbitantes por qualquer alimento que conseguissem acumular, e os pobres morriam em massa. Aproximadamente 2,8 milhões de franceses – 15% da população – morreram de fome entre 1692 e 1694, enquanto o Rei Sol, Luiz XIV, flertava com sua amante em Versalhes. No ano seguinte, 1695, a fome assolou a Estônia e matou um quinto da população.
Em 1696 foi a vez da Finlândia, onde entre um quarto e um terço da população morreu. A Escócia sofreu sob uma fome rigorosa entre 1695 e 1698. (Continua).
Advogado de empresas (OAB/AM 436). Ex-funcionário do Banco do Brasil, nomeado como Fiscal Cambial junto a agências bancárias locais, comissionado a ordem do Banco Central. Cursou Contabilidade, Comunicação Social e lecionou História.