André Ricardo Costa
Professor da Ufam
Os recentes eventos climáticos guardam relações inusitadas entre Amazonas e Rio Grande do Sul. Na década de 2010 o governo federal deu a pesquisadores notáveis recursos suficientes para compreender como os padrões climáticos se apresentavam à época de modo a estimar os cenários das próximas décadas.
O resultado é o documento Brasil 2040, datado de 2015, identificável na internet sob a coordenação de Carlos Galvão e Cybelle Braga. Um dos avisos para os anos seguintes são anomalias que tendem a reduzir as chuvas na Amazônia e aumentar na Região Sul.
Diante do aviso percebe-se que não se pode mais pensar apenas em termos de “a próxima seca”, ou “a próxima cheia”. Toda a vida amazônida, e gaúcha, e brasileira, precisa ser repensada. Não podemos mais nos permitir sufocar pelas forças do imobilismo e da negligência. Das confusões e dos oportunismos que tem poluído o debate público à parte da literatura científica.
Para uma análise com o menor componente ideológica possível podemos concordar que, havendo governo, que este cumpra seu papel. Que não proíba o que pode ser bom, e não se omita diante do óbvio. Que faça, e não impeça de fazer.
À direita vi como solução para a tragédia gaúcha adaptações no Código Florestal que acrescentam possibilidades de intervenções nas áreas de preservação permanente nas margens dos rios. Hoje um quase privilégio das hidroelétricas, permitiriam também represamento para irrigações, saciar a sede da pecuária e abrir espaço para conter inundações.
A esquerda alardeou os dois primeiros pontos como óbvia intenção maligna do agronegócio. A se recordar que a experiência humana na Terra poderia ter sido há muito abreviada caso os antigos egípcios não tivessem inventado a agricultura intensiva nas margens do Nilo, pode-se dizer que a esquerda quer nos levar para a pré-História.
Porém, ninguém precisa pagar para ver a irresponsabilidade devorar nossos rios pelas margens. Um pouco de zelo teria conduzido os proponentes das alterações no Código Florestal a ofertarem as salvaguardas regulatórias embutidas na avaliação de utilidade pública dos projetos. O próprio Brasil 2040 lhes serviria de subsídio para as discussões que, vencidas, abririam espaço para as devidas ações.
À esquerda vi como soluções um conjunto de obras públicas que poderiam mitigar a tragédia, que estariam esbarrando nas restrições orçamentárias consequentes de um estado menor que o desejável. Porém, o estado que não cumpre seu papel no atendimento emergencial também é o mesmo que nem de longe consegue armar os esquemas de governança efetivos para zelar dos maiores itens do seu patrimônio. Um manifesto de engenheiros, arquitetos e geólogos apontou que bastava à prefeitura de Porto Alegre que trocasse as borrachas das comportas que a tragédia teria sido menor.
No Amazonas, quais estruturas correspondentes às comportas gaúchas estão precisando de manutenção, a quem precisaremos recorrer para adaptar nossa vida às novas realidades climáticas?
Sei que o governo estadual não tem a mísera ideia de como administrar seus itens patrimoniais mais básicos, como equipamentos, móveis, veículos, edifícios e terrenos. Um sistema era trabalhado por volta de 2015 a 2019, mas foi abandonado em meio às conveniências políticas.
Se não há zelo pelo básico, pelo mais complexo, que exige elevada sensibilidade e ciência, como ativos culturais, de infraestrutura, e os naturais, nosso maior patrimônio. Da esquerda à direita, sobrepõem-se ideologias patrimonialistas. Que uma cobrança incessante possa conduzir à ideologia do zelo.