Dizem os poetas que o terceiro minuto da aurora é a mais bela coisa que o homem pode ver. Para mim a mais bela imagem que minha memória aprisionou não foi uma paisagem, um monumento histórico, determinado país ou cultura, um filme, um quadro, nem a caneta-tinteiro Parker 51 folheada a ouro que meu pai deixava usar quando pequena: A mais bela coisa que minha memória aprisionou até hoje, foi o multicolorido do casario da Manaus-Sorriso, incluindo minha casa e outras tantas com a pintura de listras horizontais nas cores branca e vermelho-escuro. Sim, havia o costume das casas listradas e ainda resta uma na Avenida Sete de Setembro esquina com a Rua Jonathas Pedrosa que pertenceu à família Arnaud. Os novos proprietários tiveram a sensibilidade extrema na permanência das cores originais dos anos cinqüenta. Nessa época, Manaus sorria. Apesar do isolamento geográfico as pessoas mantinham-se unas e indivisíveis na hospitalidade cercadas pelo aroma penetrante das angélicas vindas do Careiro. Manaus-das-angélicas a enfeitar tanto banquetes, festas, igrejas, quanto lápides e mausoléus. Feitas tanto para mãos enluvadas como para mãos descalças e calosas. Do caule longilíneo saíam campânulas minúsculas e brancas formando uma palma odorífera. As angélicas, assim como nós eram unas e indivisíveis. Brotavam de um só caule. Tinham a mesma seiva fraterna. Assim como nós. Não possuíam a fidalguia das rosas que aqui aportaram nos anos setenta e nos inebriam até hoje. No entanto, não tinham espinhos. Tal como nós. Sem esse sentimento individualista do hoje afastando e rejeitando toda a mão que se acerca. Nos dias atuais o mais belo que vi até agora, (apesar dos problemas inerentes ao nascimento de uma megalópole prematura) não foram os viadutos, as luzes, os edifícios, a Ponta Negra, os “shoppings” colossais, nem o telefone última geração que aposentou o 2564 do velho telefone negro de disco prateado fixado na parede de minha casa listrada. A coisa mais emocionante que vi no agora foi a nova pintura do Palácio Rio Negro. (Uma vêz palácio, sempre palácio). Este junto com o igarapé, sempre foram minha paisagem. Posso até assegurar, sem exageros, que ao abrir os olhos à razão a primeira coisa que vi foi o palácio com a cor amarela (idêntica a de hoje) e a guarita, postes de arco voltaico, portões e gradis de ferro na cor verde musgo. Essas cores assim como as casas listradas, ficaram tão presas em minhas retinas que nem o cinza de anos a fio conseguiu enfraquecer.
Em meio aos achaques próprios de megalópole surge esse momento de satisfação profunda. Como um sol de justiça. “Manaus tinha identidade!” Isso foi dito por minha amiga Marilinda, espanhola e mestra em letras, com cátedra na Universidade de Galícia, quando esteve em nossa cidade no início dos anos noventa. Falou com um misto de pena e nostalgia ao recordar a terra que vira e a qual se afeiçoara nos anos sessenta quando aqui esteve por vez primeira. “Suas casas eram alegres e coloridas. Possuía personalidade marcante”. Complementando suas palavras, afirmo que o multicolorido do casario manauense rivalizava com a policromia de suas auroras e crepúsculos, com a de sua fauna e flora exuberantes. As cores das casas de Manaus eram sua principal característica, fazendo-a definitivamente reconhecível. Como uma impressão digital. Única. Era parte de nosso corpo e espírito. E continha nessa forma peculiar de se expressar a promessa de comunhão com o futuro. Com a instalação da Zona Franca em 1967, mesmo sendo modelo econômico vitorioso, deixou saldo negativo na arquitetura citadina, principalmente no centro histórico onde o comércio efervescente e o turismo frenético ofuscaram até as mentes mais lúcidas. Permitiu-se a destruição de prédios históricos. Proliferaram incêndios supostamente criminosos. Cobriram as fachadas do casario com placas de mau gosto. Alteraram com reformas “modernas” a estética singular. Azar, dirão alguns! Mas um poeta dizia que azar é o pseudônimo usado por Satanás quando não quer assinar a obra. Nós mesmos, da terra, hipnotizados pelo prazer consumista relegamos ao esquecimento nossa memória honrosa. Não bastassem as ordens ditatoriais da época obrigar a cor cinza para a pintura de órgãos governamentais; não percebemos que Manaus ficava mais cinza com a desfiguração de seu centro histórico; não percebemos que gerações inteiras foram assim robotizadas. Blindadas a qualquer estímulo do sentimento, não permitindo outra cor a não ser da Manaus-tão –cinza. Hoje, em busca da identidade perdida, retorna essa explosão policromática nos casarões antigos, pertençam eles a particulares ou à administração pública. E dentre eles surge o Palácio Rio Negro como um poema imenso. Cercando os versos dos meus dias. Sim, é um monumento entre outros tantos da Manaus feito poesia. Mas para o poetismo não se estabelece hierarquia. Por isso, particularmente, o Palácio é um poema essencial. Imenso. Sua poesia inteira está contida num só verso: A cor amarela. Sonho querido, raptado dos anos cinqüenta. A cor é o detalhe afetivo, sua linguagem poética, o ritmo das entranhas. A especialíssima cor é o eco de vozes memoriais. É sinal revelado aos de hoje. É fantasia feito realidade em que se projeta a esperança salvífica dos tempos que supúnhamos perdidos. É a linha divisória entre o humano e o divino. A cor amarela do Palácio Rio Negro reluz como rima rica de todos meus agostos. Reluz … Sob um sol de justiça. Manaus sorri.
CARMEN NOVOA SILVA, é Teóloga e membro da Academia Amazonense de Letras e da Academia Marial do Santuário Nacional de Aparecida-SP