Breno Rodrigo de Messias Leite*
A visita de Nicolás Maduro ao Brasil foi marcada pela polêmica. Assim que as primeiras imagens de sua comitiva começaram a circular nas redes sociais houve uma polvorosa das forças de oposição que questionaram a legitimidade e a legalidade da visita. Na mesma manhã, ao posar para os fotógrafos e dirigir as primeiras palavras para a imprensa, o presidente Lula afirmou que: “Eu vou em lugares que as pessoas nem sabem onde fica a Venezuela, mas sabe que a Venezuela tem problema na democracia. É preciso que você construa a sua narrativa e eu acho que, por tudo que conversamos, a sua narrativa vai ser infinitamente melhor do que a que eles têm contado contra você.” Ainda na condição assessor internacional ad hoc do autocrata venezuelano, insistiu o presidente brasileiro: “Se eu quiser vencer uma batalha, eu preciso construir uma narrativa para destruir o meu potencial inimigo. Você sabe a narrativa que se construiu contra a Venezuela, de antidemocracia e do autoritarismo”. Afinal, o que está em questão, ainda nas palavras do presidente brasileiro, é a necessidade de “mostrar a sua narrativa para que as pessoas possam mudar de opinião” sobre a natureza e os fatos decorrentes do regime venezuelano.
As opiniões de Lula tiveram o efeito de uma bomba na opinião pública, o que contribuiu para acirrar ainda mais os ânimos entre os apoiadores do governo e as forças de oposição.
Desde a ascensão de Hugo Chávez ao poder, depois de um longo período de governos neoliberais e alinhados aos interesses norte-americanos na América Latina, a Venezuela transformou radicalmente o seu regime político. Chávez promoveu reformas constitucionais, a recentralização do poder político nas forças armadas e o direcionamento dos recursos do petróleo para as camadas mais pobres da população. O modelo chavista ou bolivariano patrocinou a ascensão de outros líderes de esquerda na região, como Rafael Correa, no Equador, Evo Morales, na Bolívia, o casal Kirchner, na Argentina. Depois de seu falecimento, em 2013, Nicolás Maduro ascende como seu sucessor e herdeiro da Revolução Bolivariana. Foi durante o governo Maduro que as contradições da revolução se afloraram. Foi uma combinação explosiva de violência policial contra a população, disparada dos índices de inflação e escassez de produtos básicos que afetou diretamente a vida da população. Em suma: a repressão política, o declínio na qualidade de vida e a crise dos refugiados expuseram as vísceras do regime bolivariano.
Por mais de uma década, os Estados Unidos, a União Europeia e outros países tentaram mudar o regime bolivariano da Venezuela com a utilização de sanções econômicas e militares, isolamento diplomático do regime da comunidade internacional e dos organismos multilaterais, e o reconhecimento de um governo alternativo liderado pelo parlamentar de oposição, Juan Guaidó. Tudo isso não foi suficiente para demover Maduro do poder. A estratégia internacional foi um retumbante fracasso. O regime de Maduro sobreviveu. E graças a assistência do serviço de inteligência de Cuba, do estoque de armamentos da Rússia e do financiamento econômico-comercial da China e do Irã, o regime de Maduro conseguiu, em parte, romper o isolamento imposto ao país. Empurrados contra a parede, líderes autoritários caem ou se tornam mais autoritários. É de Nietzsche a máxima segundo a qual “o que não destrói, fortalece.”
Com o início do conflito armado na Ucrânia, o cenário de uma futura crise energética voltou a preocupar os líderes das grandes potências, sobretudo nos Estados Unidos e nos países da União Europeia – estes, fortemente dependentes de fontes de energia da Rússia. Outrora inimigos da Venezuela, o presidente norte-americano Joe Biden já se propôs a reduzir as sanções econômicas e ensaia retomar os diálogos com a Venezuela. Já o líder da União Europeia, o presidente francês Emmanuel Macron trocou elogios públicos com Maduro na reunião de cúpula da COP-27, no Egito. Ao descartarem Guaidó do jogo da mudança de regime na Venezuela, os EUA e a UE também mandaram às favas a defesa dos direitos humanos, da democracia, da liberdade de expressão e o que mais houver. Não é de hoje que países democráticos ajustam a sua retórica e as suas relações diplomáticas de acordo com as necessidades e o cliente. É arquiconhecida a frase de Franklin Delano Roosevelt sobre o ditador da Nicarágua: “Somoza may be a son of a bitch, but he’s our son of a bitch.”
A falta de realismo e o aprisionamento ideológico não ajudaram a diplomacia brasileira na relação com o regime venezuelano até agora. Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva conseguiram, em parte, domar o ímpeto de Chávez numa eficiente estratégia de cooptação, contenção e estreitamento de parcerias estratégicas. Já os governos seguintes – Dilma Rousseff, Michel Temer e Jair Bolsonaro – transformaram a parceria em rivalidade sistêmica. (Houve até, em algum momento, no ápice da crise como o país vizinho, a sugestão de se iniciar um conflito armado). Por causa da inação da diplomacia brasileira, a Venezuela, o país com a maior reserva petrolífera do mundo, foi colocada zona de influência da triarquia Moscou-Pequim-Teerã com a colaboração do regime cubano.
A reconstrução da União de Nações Sul-Americanas (UNASUL), importante instrumento de integração regional, cooperação técnica e definição de agendas comuns, é uma iniciativa decisiva não só para o fortalecimento das relações diplomáticas com a Venezuela e os demais países da região, mas também para a volta da Venezuela para o concerto sul-americano liderado pelo Brasil. A tentativa de se isolar a Venezuela mostrou-se, até aqui, uma estratégia totalmente ineficaz; precisamos virar esta página e iniciar um novo capítulo no relacionamento com a Pequena Veneza. Cabe a nós a liderança do subcontinente e do entorno estratégico sul-americano sob pena de atrairmos para a região os conflitos e a tensão geopolítica das superpotências.
É atribuído a Lao Tsé, sábio chinês, o seguinte ensinamento: “Mantenha os amigos sempre perto de você e os inimigos mais perto ainda.” Que fique a lição.
É cientista político