Usamos as pessoas hoje da mesma forma como usamos os aparelhos eletrônicos. Ficamos com ele até aparecer um modelo mais moderno e com mais funções. E fazemos isso sem nenhuma culpa ou remorso. Zigmunt Bauman
Correntes da Sociologia e da Filosofia convencionaram chamar a época do pós-guerra – principalmente após 1960 – de pós-modernidade ou pós-modernismo. Zigmunt Bauman, sociólogo polonês que desde a década de 70 começou a estudar os efeitos da globalização e as mudanças na sociedade do pós-guerra, escreveu junto com Carlo Bordoni um livro onde cunhou 2 novos conceitos: a Modernidade Sólida, período antes da 2ª Grande Guerra, e Modernidade Líquida que se inicia logo após. Chegou aos conceitos através da análise do comportamento das pessoas na sociedade nestes períodos. Disse ele sobre o último período: “Vivemos tempos líquidos. Nada é para durar.“
Sociedade Sólida e Sociedade Líquida
A Sociedade Sólida tinha valores comuns, rigidez e as relações mais fortes e duradouras. A busca pela verdade era um compromisso sério para os pensadores desta época. Uma era de solidificação das relações humanas, das relações sociais, da ciência e do pensamento. No novo momento, na Modernidade Líquida, a sociedade e as relações são fugazes, frágeis, maleáveis. Por isso o conceito de líquida. A relação econômica se sobrepõe às relações humanas e sociais, fragilizando os laços entre as pessoas e entre pessoas e instituições.
O consumismo é a nova moral, a nova lógica da sociedade: somos o que podemos comprar, o que consumimos. Até afetos e atenção também podem ser adquiridos, apesar de o interesse ser muito mais pela quantidade do que pela profundidade, a conexão se sobrepõe ao relacionamento e a superficialidade à profundidade. Quanto mais conexões melhor, mas com a superficialidade necessária pois as novas relações são frágeis, eventuais e passageiras. Quanto mais conexões maior é a ostentação e a pessoa é cada mais requisitada. Na lógica líquida a pessoa é aquilo que ela consome, não o que ela é. O capitalismo nos transforma também em objeto. A busca pela felicidade é uma eterna busca por consumir o que pode aplacar a ansiedade e a tristeza. Aí há a necessidade de busca contínua para ser feliz pois a felicidade, desta forma, é sempre passageira e fugaz.
Um estado de crise
Na passagem da Modernidade Sólida para a Líquida há a sensação de que o Estado e as Instituições não são mais capazes de cumprir suas promessas e corresponder às expectativas. A fé e a confiança na potência desse Estado começam a erodir. Nesta época Peter Drucker declarou que as pessoas precisavam, deveriam e teriam em breve de abandonar as esperanças de salvação “vindas de cima” , seja do estado ou da sociedade. Muitos ouvidos absorveram esta mensagem e cada vez mais a percepção popular passou a contar com o coro
crescente de um público instruído e formador de opinião. O Estado, antes o motor poderoso do bem-estar universal, passou a ser mais um obstáculo prejudicial e até meio odiado por sua incapacidade de cumprir esta função. No novo momento o emprego tornou-se uma atividade individual, cada um é o empreendedor de si mesmo. A responsabilidade do sucesso é individual, cada pessoa é uma instituição. A exploração capitalista é menos uma exploração e é vista mais naturalmente como o empreendedor de si mesmo vendendo sua força de trabalho ao empreendedor que tem capital. É uma modernidade ágil, líquida, acompanha a moda, acompanha o pensamento de sua época. As relações foram submetidas à lógica capitalista do consumo.
Crise. Um conceito que ilustra bem esta passagem. A crise do conceito de comunidade traz um individualismo acelerado: “Trata-se de um consumismo que não visa a posse de objetos de desejo capazes de produzir satisfação, mas que torna estes mesmos objetos imediatamente obsoletos, levando o individuo de um consumo ao outro numa espécie de bulimia sem escopo (o novo celular oferece pouquíssimo a mais em relação ao velho, mas descarta-se o velho apenas para participar desta orgia do desejo).” Texto de Umberto Eco numa crônica de 2015 que clarifica com simplicidade a idéia.
Estado de Crise (ZAHAR Editora) é o nome do livro onde Bauman e Carlo Bordoni discutem este e outros problemas sem chegar a uma conclusão de quanto tempo pode durar, ou ainda, o que pode vir a substituir essa liquefação. Estes movimentos sabem o que não querem, mas não sabem o que querem. Eco finaliza sua crônica nos dando uma visão mais objetiva:
“ Existe um modo de sobreviver à liquidez? Existe e é justamente perceber que vivemos numa sociedade liquida que, para ser compreendida e talvez superada, exige novos instrumentos. Mas o problema é que a política e grande parte da intelligentsia ainda não entenderam o alcance do fenômeno. Por ora, Bauman continua a ser uma vox clamantis in deserto”.
Diz mais ainda a voz clamando no deserto: “O consumismo promete algo que não pode cumprir: a felicidade universal. E pretende resolver o problema da liberdade reduzindo-a à liberdade do consumidor.”