18 de outubro de 2024

Em defesa do funcionalismo público

Quando o mundo atinge mais de 900.000 vítimas da pandemia do vírus da COVID-19, 15% destas no Brasil, somos, mais uma vez, surpreendidos pela prioridade do ministério da Economia em encaminhar ao Congresso Nacional a PEC nº 32/2020, dita Reforma Administrativa.

Ainda sou do tempo em que nossos pais nos incentivavam a fazer um concurso público e se tornar um “cara federal”. Era um orgulho paterno pela importância do cargo e um mérito, pois, se vencia um processo seletivo muito competitivo.

Me formei em geologia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), em 1990, e dividi os meus primeiros anos de formado entre a experiência privada, como responsável técnico de uma mina com recursos minerais de aplicação na construção civil, em Niterói (RJ), e professor público no ensino superior.

Em 1993 passei no concurso da Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM), vinculada ao Ministério de Minas e Energia (MME), assumindo uma vaga na superintendência de Manaus, em 1994, onde trabalhei como empregado público até 2001. Saí num programa de desligamento incentivado do governo Fernando Henrique Cardoso (FHC), voltando para iniciativa privada.

Como professor 40 horas em uma universidade privada, ganhava o dobro do que me oferecia o salário público com a mesma carga horária.

Quando ouvi entre as justificativas da PEC que a reforma daria fim aos super salários, pensei com meus botões: quais servidores teriam tais super salários? Fui ao Portal da Transparência e são eles uma minoria de representantes do Judiciário, do Legislativo, do Executivo e alguns cargos comissionados.

A grande maioria dos nossos servidores públicos não tem super salários e em muitas atividades não possuem reajustes salariais há anos. Lembro do meu próprio caso em 2001. Sem reajustes ao longo do governo FHC, a corrosão inflacionária do meu poder aquisitivo era tal que o orçamento destinado aos custos com moradia, energia, água, que valiam 20% do meu salário em 1994, equivaliam a 85% do mesmo salário em 2001.

Quem lê a PEC nº 32/2020 não identifica nenhuma linha destinada à correção de super salários e/ou estratégias para que se respeite, constitucionalmente, o teto máximo dos salários públicos.

Outro engodo que a PEC não enfrenta é o de fazer com que as castas minoritárias e privilegiadas tenham os mesmos direitos de qualquer trabalhador público, ou privado, a exemplo de férias de 30 dias (a partir do ano trabalhado). Considerando os “recessos brancos” e outros penduricalhos corporativistas, alguns iluminados chegam a receber do Estado brasileiro, integralmente e sem trabalhar, mais de 60 dias por ano…

Outro mito do funcionalismo público que a reforma administrativa encaminhada pelo governo Bolsonaro diz enfrentar é o da estabilidade do servidor, pois, a PEC prevê o fim da aposentadoria compulsória como forma de punição.

Qualquer servidor público quando não desempenhe corretamente suas funções é demitido. Fui superintendente da CPRM no período entre 2004 e 2007, e, infelizmente, por falta grave, assinei, como gestor, a demissão de um técnico com mais de 30 anos de experiência. Aliás, nossa legislação trabalhista é clara e pune, anualmente, por demissão, centenas de maus funcionários públicos.

O que a PEC não justifica é o porquê de a reforma não atingir os maus juízes e maus desembargadores, os maus políticos, que, com, ou sem, tornozeleiras eletrônicas, diante de seus ilícitos, são compulsoriamente afastados com suas pomposas aposentadorias.

Será que o ministro Guedes poderia citar o nome de um funcionário público que tenha sido gratificado com essa ‘punição’ ao mau desempenho de suas funções?

Caro ministro, há bons e maus profissionais na iniciativa privada e no sistema público. A PEC, além de ferir princípios construídos pelos constitucionalistas de 1988, retira a base de governança institucional do Estado brasileiro. Nos parece oportunista, desafiando nossas inteligências ao criar um pano de fundo ao debate pela falta de um plano de desenvolvimento econômico à altura da capacidade produtiva brasileira.

Se o Estado é pesado, cortemos, pois, os privilégios; taxemos as grandes fortunas; enfrentemos a corrupção; administremos corretamente renúncias fiscais e a inadimplência dos grandes devedores… O problema não está no Servidor Público, caro ministro, onde há o seu desejo íntimo de “colocar granadas no bolso”.

Talvez falte ao senhor e aos assessores do ministério da Economia um olhar de aprendizado que a pandemia, pedagogicamente, nos mostra sobre o papel do Estado na defesa de seu povo e da soberania nacional.

Quem nos acolhe nas ruas são servidores; nos hospitais, servidores; nas escolas, servidores; na ciência em busca da vacina, servidores; na segurança pública e de defesa, servidores.

Públicos, ou privados, vivemos em sociedade e somos todos servidores…

Numa destas postagens de autor desconhecido nas redes sociais li e reproduzo este desabafo: “Somos SERVIDORES PÚBLICOS, o que significa dizer que NINGUÉM nos deu vaga no serviço público, não fomos eleitos, ou indicados por ninguém. […] NOSSA ESTABILIDADE não é um privilégio. Ela tem previsão legal e visa a PROTEÇÃO do servidor (e do serviço) público concursado, para que possamos atuar com independência, com técnica, competência e seguindo os princípios morais, éticos e legais da Constituição Federal, SEM O RISCO DE SERMOS PREJUDICADOS por interesses espúrios, ou assédio moral. ”

Embora a PEC traga o discurso político de que os atuais servidores não serão atingidos, na prática, a atual proposta ideológica de “uberização” dos serviços do Estado está na contramão da moderna Administração Pública, que prevê, no instrumento constitucional que ampara o trabalhador aprovado no concurso, a estabilidade, a impessoalidade e a profissionalização de funcionários em um sistema que precisa, apenas e tão somente, de bons e eficientes gestores, comprometidos com a causa do bem comum.

Desde 2008, voltei ao serviço público, agora na instância estadual, aprovado no processo seletivo ao cargo de Analista Ambiental do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM). Me orgulho de ser um servidor público e por isso, conclamo aos trabalhadores que reprovem, por princípio, o texto da PEC 32/2020 na forma e momento que foi encaminhado ao Congresso Nacional.

Daniel Nava

Pesquisador Doutor em Ciências Ambientais e Sustentabilidade da Amazônia do Grupo de Pesquisa Química Aplicada à Tecnologia da UEA, Analista Ambiental e Gerente de Recursos Hídricos do IPAAM

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