De “cidadão, não. Engenheiro civil, formado, melhor do que você” a “sabe com quem está falando, seu policial analfabeto!” vamos caminhando para a compreensão do que é cidadania, pois alguns fatos que ocorrem no cotidiano do nosso país não são mais considerados normais ou aceitáveis. O sentimento de indignação que algumas cenas causam, demonstra que estamos amadurecendo como sociedade. Ainda falta muito, mas estamos no caminho.
As frases citadas devem ser ditas, milhares de centenas de vezes, Brasil afora. São, em essência, um costume histórico do brasileiro habituado com “carteiradas” e perguntas como “Você sabe com quem está falando?” ou “Será que não tem outro jeito?”. Hábitos que denotam preconceito, soberba e, principalmente, desprezo pelo seu semelhante ao considerá-lo abaixo do seu nível. Para desconsiderar seu “próximo” como “próximo”, basta ter um bom cargo público, ganhar um salário elevado, ter um carro caro e uma bela casa, viajar para o exterior e pronto. Você já pode ser elevado a outro patamar, muito acima dos “meros mortais”.
Ao se considerar um ser iluminado não basta somente humilhar quem é visto como inferior, a superioridade avança para ter o direito de descumprir normas legais, afinal como um ser superior pode se submeter a um ordenamento que ele considera errado ou desnecessário? São regras para a sociedade, para um cidadão comum. Ele é desembargador, deputado, CEO da empresa X, empresário bem sucedido, engenheiro civil. Ele não é um qualquer, não é um “guardinha analfabeto”.
Felizmente vivemos em sociedade, palavra derivada do latim que significa “reunião ou associação de pessoas para a consecução de um fim”. Essa vivência em conjunto faz surgir uma premissa básica para nossa natureza em sociedade: eu e o outro. Em outras palavras, temos que conviver com outros e isso gera conflitos, impondo a necessidade de criação de regras, normas e códigos capazes de delimitar a ação de cada um, para que ninguém prejudique ninguém. Nesse ponto um dito popular é perfeito e deixa claro uma regra do convívio em sociedade, pois envolve bom senso, ética, valores morais e direitos e deveres assegurados em Lei que cada um de nós deve seguir: “o seu direito acaba onde começa o dos outros”.
Ao viver em sociedade não basta o “eu”, existe a necessidade do “nós”. Óbvio que cada um deve ir atrás da sua felicidade, do seu bem estar, dos seus desejos, mas, em momento algum, essas diretrizes de vida podem desconsiderar o bem estar daqueles com quem se divide a vida em sociedade. Seja ele quem for. Estamos interligados e cada ato individual reflete na sociedade, assim como atos coletivos afetam a vida de cada um. Podemos até querer esquecer isso tudo e viver sozinhos em uma caverna, mas com certeza vamos correr o risco de talvez, até lá, existir regras da natureza para serem obedecidas, ou, no mínimo, respeitadas.
Convivendo em sociedade, respeitando o próximo, cumprindo obrigações e gozando de direitos você entende o que é ser um cidadão e passa a sê-lo em sua plenitude. O cidadão tem direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei. Participa da definição dos destinos da sociedade em que vive. Não só vota, mas acompanha a gestão dos recursos públicos que são arrecadados através da cobrança dos tributos e fiscaliza a atuação dos seus representantes políticos. Como cidadão ele também tem deveres e respeitar as regras legais de conduta é comportamento básico.
E o que faz as pessoas se submeterem ao “nós” em sociedade? De acordo com pensadores Jean-Jacques Rousseau e Thomas Hobbes, sem levar em consideração o contexto político-sociológico da ideia cada um, de maneira geral o que marca a transição do estado de natureza do homem para um contexto de sociedade civil é a existência do chamado Contrato Social.
O contrato Social é um compromisso assumido entre pessoas e o Estado, que garante a sobrevivência da sociedade como nação, estabelecendo direitos e deveres individuais e coletivos, não se aceitando a alegação de que não se assinou contrato algum e que por isso não há o que se respeitar. Com o Contrato Social não se pode acordar e resolver matar o vizinho pelo fato de não gostar dele, alegando ser um homem livre. Pode até ter a liberdade de fazer, mas caso faça certamente será preso e responderá pelo crime de homicídio por motivo fútil, é o que está estabelecido nas normas. Esse mesmo contrato social com o Estado que impõe limite na sua vontade de fazer o que quiser é o que permite que você exerça sua cidadania.
Dizer “cidadão, não. Engenheiro civil, formado, melhor do que você” é querer romper com o Contrato Social que temos. Dizer “sabe com quem está falando, seu policial analfabeto!” é negar que você faz parte de Estado Democrático de Direito. Tornar essas frases e as pessoas que as disseram parte negativa do noticiário nacional é um sinal positivo. Um sinal de que não há mais tolerância para esses tipos de atos e essa repulsa coletiva tem que se propagar para todos os setores da nossa sociedade, onde encontramos preconceito, racismo, homofobia e outras formas de olhar o “próximo” com desprezo.
Você sabe com que está falando? Sim, sei. Falo com um cidadão.
*Moisés Hoyos é Analista-Tributário da Receita Federal do Brasil