Doce tempo de criança. Épocas idas em que eu corria, pés desnudos, livremente, pelas ruas asfaltadas ou descalças de Campo Grande, minha querida e saudosa “Big Field”. Tempo dos balões, dos papagaios, do futebol de rua, das noites em que contemplávamos as estrelas e a Lua vaidosa sem apontá-las, para não criar verrugas nas pontas dos dedos. Bons tempos, em que, sentados nos meios-fios da esquina das Ruas Amaral Costa e Manai, maquinávamos belas traquinagens, travessuras próprias dos jovens da época.
Sorríamos, conversávamos, brincávamos de pique-esconde, falávamos coisas do arco da velha sobre os Professores e Inspetores das Escolas, sabedores, porém, da importância de sua presença e do papel que desempenhavam em nossas vidas, o que nos fazia conferir a eles o nosso respeito e admiração. Passos, Luiz, Gilberto, Almir, Wilson, Wilma, Lúcia, Yone, Mercês. Tudo importa e nada importa. Os nomes passam, por vezes, vadios em nossas vidas. O que eles representaram e os trazem à lembrança permanece vivo e eterno.
Velhos tempos. Belos dias. Assim diz a música. Pensei, por acaso, em fogueira? Claro que sim. Lá estava ela. O fogo aquecia o seu entorno num diâmetro aproximado de cinco a dez metros. Macaxeira, batata doce e espigas de milho verde jogados em suas brasas avermelhadas assavam convidativos para o paladar. Cocadas, muitas cocadas, que só dona Albertina, minha mãe, sabia fazer. Quentão, quadrilha, balão.
Olhares fugazes ou mais ousados percorriam silenciosos os quatro cantos da festa à procura do rosto da amada pretendida, fazendo corar os mais tímidos, nem sei bem se pelo olhar correspondido ou se pela força do calor das brasas incandescentes. O passar de anel e o beijo no rosto; o pula-fogueira. Relembrar causa arrepios ao pensar naquela moça, paixão platônica dos meus idos quinze anos, loira, esbelta, olhos verdes. Sorriso de rainha. O que a juventude não faz.
23 de junho de 2020. Horas, dias, meses e anos passaram inexoráveis ao sabor do tempo para transformar nossos fios de cabelo em dispersos flocos de neve, salpicando de um fosco branco os ralos fios de bigode e a barba branca por fazer. Tudo mudou. Ficamos todos reclusos em nosso reduto caseiro. Possuíamos, porém, em nosso favor, uma poderosa arma, por vezes traiçoeira, que a modernidade nos impingiu: o aparelho celular e todos os seus derivados.
Os amigos de caserna da saudosa turma “amarela” criaram um grupo que dialoga com frequência e, no último dia 23 de junho, o amigo Oceano e eu descobrimos que a nosso dia de nascimento coincidia naquela data. Em meio a cumprimentos e felicitações, ele apresentou um histórico poético e fascinante sobre a origem das comemorações dedicadas aos santos João, Pedro e Antônio.
Um momento ímpar que me possibilitou dar asas à imaginação e trazer até você, caro leitor do “Jornal do Commercio” do Amazonas, este delicioso petisco cultural, consciente da tristeza do povo português e, particularmente do amigo Oceano, a quem ofereço esta crônica pelo sofrimento de observar as ruas do Porto e de Lisboa despidas do Fado e da emoção, na tentativa de minimizar a dor e as lágrimas de tristeza, que faço minhas e trazer, em palavras de pura emoção, a grandeza da tradição popular que ilumina e embeleza a Santa Terra de Camões.
O ser humano e seus feitos no desenvolvimento de tecnologia nos mais diversificados ramos são obra divina. A fraternidade, a capacidade de amar e de praticar o bem iluminam os porões escuros da alma. A aptidão física para exercitar esses dons divinos necessariamente passa por corpos e mentes sãs, condição solidificada pela ingestão de água pura em grande quantidade, alimentos saudáveis e exercícios físicos regulares.
A terra revolvida se entrega, tal colo de útero da procriação, para acamar a semente que será plantada, fertilizará e produzirá o rebento da vida, em ciclos temporais específicos e bem definidos da mãe natureza. As mãos dos lavradores criarão calos. As águas da chuva e os raios de sol adubarão e fertilizarão a gravidez do solo. A plantação surgirá benfazeja pradaria afora.
É tempo de natalidade. Início de Solstício. Momento exato em que os produtores iniciam a colheita do que plantaram e fizeram frutificar. Agradecidos pela fertilidade da terra, festejam e agradecem aos céus a dádiva a eles concedida. Mês de junho em Portugal. O rebento da produção se apresenta ao lavrador como redenção e prova de vida. O dia 24 de junho é feriado na terra dos Lusíadas.
Grupos de amigos e as famílias se reúnem nas aldeias, freguesias e concelhos, de norte a sul de Portugal, mas principalmente em Lisboa, Porto e Braga, vestidas e enfeitadas com trajes joaninos. Promovem “bailaricos populares”, tendo como fulcro o apetitoso cardápio de sardinhas assadas e músicas festivas que invadem as ruas. Ricos e pobres se confraternizam num só ambiente. Em imensas filas à porta dos restaurantes, no almoço e jantar, o povo aguarda, paciente, para saborear o prato secular das tradições portuguesas.
A brisa suave desliza fagueira pelas ruelas dos bairros residenciais, denunciando um frescor típico do 23 de junho do meu imaginário, com a conivência permissiva do céu límpido e escancarado de luz, exibindo graciosa e orgulhosamente o brilho da Lua e as estrelas cintilantes, a enfeitar os confins de sua infinitude.
Os casais, dos mais tradicionais aos mais jovens, acompanhados pela família, caminham em passos suaves, na cadência suficiente para observar as bandeirolas, as luzes dos candelabros clareando o místico asfalto, envolvidos pela magia da noite fria e enluarada, certos da recepção tradicionalmente carinhosa dos moradores que, do sopé de suas portas, ostentam felizes um sorriso aberto e o calor humano, oferecendo-lhes a “broa”, pão típico português, caseiro por excelência, acompanhado da deliciosa sardinha assada, a ele sobreposta.
Nada de mais relevante existirá que denuncie, com tamanha propriedade, o requinte da receptividade lusitana, berço de Camões, em momento de tão significativa fartura, período em que, além de João, comemoram os Santos Antônio e Pedro, cuja força religiosa induziu a Igreja Católica a transportar, do paganismo das comemorações em seu nascedouro para um conteúdo religioso tipicamente português, a força da tradição para celebrar a vida, forjada no arado, no plantio e na colheita.
As músicas e as vozes dos transeuntes se propagam por ruelas e avenidas, transmitindo a alegria e a paixão de casais enamorados, em poesias calentes e versos recitados até o chegar da meia-noite, momento culminante onde os fogos de artifício retumbam e explodem em luz, ecoando na madrugada que se avizinha e mal colocou a roupa para dormir, iluminando o chão por onde passará a procissão, desenhado com palha, serragem e arroz, coloridos com devoção.
O coração português enlutou, qual fogueira apagada, pela impossibilidade de, no último 23 de junho, comemorar data tão significativa? O ano de 2020 foi diferente? A festa não aconteceu? Sim, respondo eu, em tom e sentido dúbio. SIM, para afirmar que não se realizou. Também SIM, para dizer que, em cada palavra desta crônica e no imaginário do povo português a fogueira permaneceu acesa e a sardinha assada foi devidamente servida, sobreposta à deliciosa broa, fazendo viva a festividade iniciada em priscas eras por seus egrégios avós para comemorar a colheita.
Assim foi este 23 de junho de 2020, caro amigo Oceano, data de nosso aniversário, quando você me presenteou com um relato cultural inspirador, exaltando a singeleza de um povo, o que me transportou pelo túnel do tempo para viver momentos inesquecíveis, caminhando pelas ruas e vielas, nos canteiros das mais lindas flores da tradição portuguesa.
*João de Matos Suzano é escritor