Constantemente sou abordado pelos alunos em sala de aula sobre a Filosofia do Amazonas e consequentemente sobre os filósofos e filósofas da região: “Professor Lemos, existe filosofia no Amazonas?”, “Quem são os filósofos do Amazonas?”, “E filósofas, existem?”. “Por que há tão poucas mulheres na filosofia?”, “Como diferenciar um filósofo de um escritor, de um poeta, de um jornalista, de um médico, ou ele pode ser todas estas profissões?”. Há tempos prometi a mim mesmo encontrar uma solução para ajudar os meus alunos nessa questão. No ano de 2022 fui convidado para falar na “Semana da Literatura Amazonense” sobre os meus livros, e aí, novamente, as circunstâncias proporcionaram-me a oportunidade de voltar a pensar no assunto. Nascia, assim, o projeto “Filosofia do Amazonas” com o objetivo de “identificar os filósofos e as filósofas do Amazonas para conhecimento e divulgação de suas biografias”. É um projeto onde o filósofo e a filósofa tem a oportunidade de passar a sua vida a limpo, contar a sua história de vida, seus projetos, seus sonhos. É o filósofo falando de si mesmo, abrindo o seu coração e não um pesquisador, um escritor, um jornalista escrevendo sobre o filósofo. E para abrir a nossa série, convidamos o filósofo Renato Costa de Souza, 46 anos, nascido e criado em Manaus, filho de um assistente social e de uma dona de casa, como ele mesmo nos escreve:
“Sou graduado duas vezes em Filosofia: uma pelo extinto CENESCH (Centro de Estudos do Comportamento Humano) e outra pela UCB (Universidade Católica de Brasília). Depois de uma boa caminhada no seminário católico e tocado demais pela Filosofia, decidi seguir o caminho do magistério. Demorei um pouco, mesmo sendo professor, a lecionar Filosofia, porém, por mais de 15 anos, em escolas particulares de Manaus e na rede pública estadual, realizei este desejo meu. Hoje atuo como técnico pedagógico na Gerência de Ensino Regular da Secretaria de Estado de Educação e Desporto Escolar do Amazonas, mas minha cabeça e meu coração continuam imersos no “amor à Sabedoria”. Amor esse que foi um divisor de águas na minha vida. Hoje posso dizer que há um Renato antes e outro depois da Filosofia.
Na carreira eclesiástica da igreja católica é obrigatório cursar a Filosofia antes da Teologia, foi este o fenômeno decisivo em minha vida. Um querido amigo sempre me diz que algo saiu errado no meu “ser-no-mundo”, eu deveria ser mais teólogo do que filósofo, mas a coisa saiu ao contrário. Apesar de ser sempre consultado pela família e pelos amigos sobres questões teológicas, foi a Filosofia que abriu minha perspectiva de vida e que me fez olhar acima dos muros da existência à qual estava confinado por mais de vinte anos da minha vida. Começaram os questionamentos, as buscas, as curiosidades, os assombros e as admirações por aquilo que era diferente do meu cotidiano e da minha previsibilidade. A mudança foi lenta, mas ainda é contínua. Hoje em dia, até mesmo a bíblia eu leio com olhos filosóficos. Por favor, não me perguntem como isto é possível. Como diria o filósofo Chicó: “Não sei, só sei que foi assim!”.
Depois o tsunami da Filosofia na minha vida, percebi a falta de amor, de empatia e de altruísmo em muitos ambientes onde convivi. Pessoas que falavam e pregavam uma coisa, mas nas suas relações pessoais, comunitárias e trabalhistas, eram outra. Falta a coisa mais básica que forma o coração de uma pessoa, o humanismo. Hoje, depois de tantos anos filosofando e observando as pessoas, e depois de uma especialização em Cristologia, posso dizer, sem medo, que me considero um humanista cristão. Um pouco contraditório, uma vez que o humanismo renascentista valorizava em demasia as potencialidades mortais e de afastava do divino medieval, mas, como afirmava anteriormente, eu leio a bíblia e, consequentemente a mensagem de Jesus de Nazaré, com olhos filosóficos. Antes o ser humano e sua dignidade, depois as outras coisas, afinal, minha concepção, Jesus foi o primeiro humanista cristão, estou apenas tentando seguir o que ele ensinava: “Amai-vos uns aos outros” (cf. João 13,34).
São Justino de Roma, Santo Agostinho de Hipona, e Santa Edith Stein são três pensadores que me marcaram muito e os quais ainda leio bastante. Os três, assim como eu, tiveram transformações em suas vidas por meio da Filosofia. Os três só foram capazes de descobrir a verdade que os filósofos de todos os tempos e lugares tanto perseguem, com a ajuda da filosofia. Justino, já sendo professor de filosofia na capital do Império Romano, depois de um longo diálogo com o sábio ancião Trifão, perpassando a Filosofia e a Teologia, se deu conta que a verdade estava no Lógos encarnado. Agostinho, depois e idas e vindas, como todo o jovem de seu tempo e dos tempos atuais, com a ajuda da obra “Hortencius” de Cícero, filósofo latino, um empurrão de Santo Ambrósio, bispo de Milão e com as orações de sua mãe, Santa Mônica, por meio da Carta aos Romanos (13,13), também encontra repouso para seu coração inquieto na verdade de Jesus Cristo. Edith Stein, judia convertida ao cristianismo, faz esta travessia com a ajuda da Fenomenologia de seu mestre Husserl e da autobiografia de outra mulher erudita, Teresa de Almada, ou Santa Teresa de Jesus. Mas Edith Stein ainda me encanta por sua reflexão acerca da empatia, tema de sua tese de doutorado em Filosofia. Essa empatia a levou a abrir mão de uma fuga para a América durante a II Guerra para, junto com seu povo e em nome de Deus, sofrer o martírio. Como falei também anteriormente, a empatia é uma questão que nós filósofos deveríamos trazer à tona sempre.
Para mim, a Filosofia tem um papel importante para a humanidade, hoje e sempre. Refletir, pensar, analisar e embasar a visão de mundo, a postura junto às outras pessoas e a própria contribuição para que alcancemos uma vida digna e abandonemos os mitos de nossa Grécia antiga nos atrevendo a buscar novas explicações, distantes de nossas mitologias. Como “Mãe de todas as ciências”, Filosofia pode chamar, organizar e comandar o conhecimento humano para que, enfim, sejamos capazes de superar os males de nosso tempo. Mas a Filosofia ainda tem um grande desafio, reocupar seu lugar na vida e na sociedade humanas. Como recomendação de leituras, eu indico “Diálogo com Trifão” de Justino de Roma, “Confissões” de Agostinho de Hipona e “A Ciência da Cruz” e “Ser finito e Ser eterno” de Edith Stein”.