O ano era 1969 e o local era a cidade de São Leopoldo, na área metropolitana de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Vindo do interior, com 16 anos de idade, nem tinha noção que a opinião poderia constituir crime, nem que havia lado político e que contra oiu a favor poderia causar transtornos físicos.. Eu aprendera, no colégio em minha cidade natal, Itapíranga em Santa Catarina que você podia expor sua opinião em trabalhos escolares, num enorme mural que ocupava todo o corredor do segundo andar. A única exigência era que não contivesse “erros de português” nem imoralidades ou agressões. Senão seria removido pelo professor da matéria, não pelo tema em si, mas pela apresentação.
Tive de aprender que tudo era vedado, em termos de política. As emissoras de rádio, muitas vezes tinham muito mais autocensura que a censura do governo. O número de bajuladores do regime era inacreditável. Tal qual em governos comunistas, a denúncia de parentes e superiores era estimulada. Havia muitas piadas sussurradas sobre o regime. Lembro que se ria na surdina de um suposto diálogo: “Que você acha do atual governo?” “Eu não acho nada, o último que achou alguma coisa até hoje não foi achado.” O medo era uma estratégia do sistema. Quem ocupasse um cargo qualquer já se sentia “autoridade” e autorizado a amedrontar inferiores. Tudo isso era debitado ao governo central que nem tomava conhecimento. Tinha-se receio de professores, de colegas que não se esforçavam, mas iam bem. Todos eram, para nós, suspeitos de pertencerem ao terrível SNI, o Serviço Nacional de Informações, com autoridade arbitrária, semelhante ao STF dos nossos dias. Algum colega, que desistisse de estudar, era tido como “desaparecido político”.
Eu, particularmente, me sentia perseguido por um Aero Willys preto, com três ocupantes. Eu o via no bairro onde morava, há quase 10km do colégio onde estudava. Ele rondava o colégio também. Quando prestei atenção nas placas, descobri que se tratava de carros distintos. “Mas eles podem trocar de carro”, pensei. Um dia fui preso pela manhã e colocado num carro sem que ninguém falasse para onde estava indo. Aliás, não falavam nada. Cheguei num prédio que acreditei ser uma delegacia. Eu já tinha visto em outros prédios públicos a mesma foto do presidente Costa e Silva com os dizeres: “Até 1964 o Brasil era o país do futuro. Agora este futuro chegou.” Tentei conversar com outras pessoas que estavam sentadas no mesmo banco que eu, mas fui admoestado com ordem rígida proibindo isso. Quando já eram 17 horas apareceu um homem em trajes civis, apontou para mim e outros dizendo: “Você, você, e você – fez uma pausa que pareceu demorar uma eternidade – estão dispensados”. Virou as costas e saiu pelo corredor. Olhamo-nos aliviados e saímos. Nunca soube o que fui fazer lá.
O tempo passou, mas durante muitos anos todas as informações eram contraditórias. Ouvíamos falar de censura de músicas e outras manifestações. Músicas eram censuradas pelo conteúdo político e moral. Soube de uma ordem de prisão expedida contra Monet, num teatro em São Paulo, que Raul Seixas tinha sido interrogado para entregar a diretoria da Sociedade Alternativa. Em 1976 fiz parte de um grupo de teatro amador e ensaiamos a apresentação da peça “O Pagador de Promessas” de Dias Gomes. Apresentamos a peça em nossa cidade e fomos convidados a apresenta-la na cidade de Rio do Sul, em Santa Catarina, num encontro do Mobral. Na hora da apresentação fomos proibidos por um tenente da polícia militar, que estava oupando o cargo de delegado de polícia. Motivo: um dos personagens, que fazia o papel de guarda, estava fardado com roupas da polícia. Estas roupas tinham sido emprestadas pela delegacia da nossa cidade. Não podia porque era desonrar a farda usá-la numa apresentação teatral.
Um colega passou a noite na cadeia por ter faltado com o respeito a um Juiz numa lanchonete por tê-lo cumprimentado com um “Oi, Cara”.
Na história, a inquisição foi copiada até pelos protestantes. No período militar, até juízes, que deveriam ser os guardiões do Estado de Direito, embarcaram no autoritarismo. Assim como Zé do Burro, personagem de Dias Gomes é morto por um policial, também na vida real houve muitas mortes atribuídas à militares e guerrilheiros, quando estes de nada sabiam. Houve desmandos? Muitos. Porém o desvio de dinheiro público nunca foi tolerado, muito menos estimulado.
Ditadura nunca mais. Não importa se os ditadores usam farda ou toga.