Breno Rodrigo de Messias Leite*
No último dia 21 de janeiro, os militantes de esquerda de todo o mundo celebraram os cem anos da morte de Vladimir Ilych Ulianov (1870-1924), o Lênin, teórico marxista, líder da Revolução Russa e fundador da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
O grande estrategista da Revolução de Outubro foi indiscutivelmente um refinado teórico do marxismo e um perspicaz analista dos assuntos da política internacional de seu tempo. A sua arma teórica no campo do marxismo – “uma análise concreta para uma situação concreta” – serviu tanto para a sua causa revolucionária como para os estudos das relações internacionais como um todo. No tempo em que esteve no poder, Lênin liderou a primeira revolução socialista do século XX; um complicado acordo de paz com a Alemanha Imperial para retirar o seu país da Primeira Guerra; e uma longa e destrutiva guerra civil dos bolcheviques contra o exército branco.
As relações exteriores da URSS sob o comando de Lênin enfrentaram dois movimentos de forte inflexão entre o fim da Primeira Guerra e o início da Guerra Fria. O primeiro movimento foi conduzido por Leon Trótski, chefe da delegação russa, que negociou o acordo de paz com a Alemanha – o Tratado de Brest-Litovsk, de 1918 – que concedia as regiões do Báltico, áreas da Polônia e da Ucrânia, desterritorializando praticamente toda a faixa ocidental do antigo Império Russo. Já o segundo movimento, conduzido por Joseph Stálin, reincorporou os territórios outrora perdidos por meio da força das armas, do esforço diplomático e dos imperativos ideológicos no contexto das conferências do imediato pós-1945.
Se o primeiro movimento, endossado por Lênin e implementado por Trótski, é próprio de um idealismo revolucionário quase ingênuo; o segundo movimento, um produto da realpolitik stalinista, está atento a necessidades conservadoras do realismo político da política das grandes potências.
Em sua obra clássica, Imperialismo, a fase superior do capitalismo, Lênin examina duas questões importantes: concentração, a cartelização da indústria e a sua transformação em monopólios; e a predominância do capital financeiro em toda a atividade econômica capitalista. Nas suas palavras, o imperialismo está edificado numa totalizante infraestrutura econômica capaz de dominar todas as outras nações da terra sob a espada do poder econômico, do poder político e, em última instância, do poder militar. Afirma Lênin: “O imperialismo é, pela essência econômica, o capitalismo monopolista. Isto determina já o lugar histórico do imperialismo, pois o monopólio, que nasce única e precisamente da livre concorrência, é a transição do capitalismo para uma estrutura econômica e social mais elevada.”
Outra contribuição importante de Lênin para o estudo dos assuntos internacionais diz respeito ao problema do direito das nações à autodeterminação. A transição do século XIX para o século XX foi marcada pela ascensão e queda dos impérios europeus; e também pela reação dos povos subjugados que lutavam pela causa da unidade nacional. Tanto os Estados Unidos de Woodrow Wilson como a Rússia insurgente de Lênin estavam alinhados na defesa do princípio da autodeterminação dos povos.
A questão pode ser sumarizada nos seguintes termos: “a formação dos Estados nacionais, que são os que melhor satisfazem estas exigências do capitalismo moderno, é por isso a tendência de qualquer movimento nacional. Os mais profundos fatores econômicos empurram para isso, e para toda a Europa Ocidental – mais do que isso: para todo o mundo civilizado – o que é típico e normal para o período capitalista é o Estado nacional.” Stálin, tempos depois, mandou às favas a proclamação leninista sobre da autonomia nacional.
Outro ponto decisivo foi o protagonismo dado ao internacionalismo dos partidos comunistas – Comintern (Comunista Internacional) –, isto é, o papel da ideologia na formação das políticas externas dos Estados em contraponto à tradicional diplomacia do interesse nacional praticado pelas grandes potências. O internacionalismo proletário foi uma resposta clara às investidas das potências contra a Rússia soviética; e também um esforço para armar as organizações dos trabalhadores na senda do projeto revolucionário inspirado na própria URSS. Este internacionalismo em rede funciona até os dias de hoje. Basta ver, por exemplo, o peso político do Foro de São Paulo na coordenação estratégica dos partidos de esquerda latino-americana.
Transcorrido um século, a estrutura do sistema internacional passou por muitas e profundas mutações. A URSS foi implodida pelos seus próprios erros; posteriormente, democratizada pelo ocidente; e hoje é governada por um ex-agente de inteligência soviética. O capitalismo monopolista alcançou todos os recantos do mundo: não há modelo econômico alternativo. O imperialismo é capitaneado pela hegemonia norte-americana em flagrante declínio relativo. E os movimentos de esquerda largaram a bandeira do marxismo, da revolução e da classe operária em prol de outras causas, como o ambientalismo, as questões de gênero, o racialismo e o multiculturalismo. Desse modo, a doutrina leninista estrito senso tornou-se démodé para boa parte da esquerda. Todavia, as suas análises internacionais ainda possuem valor heurístico e o seu método de investigação do real – “uma análise concreta para uma situação concreta” – são de fundamental importância para o estudo completo das relações internacionais. A Revolução de Lênin fracassou, mas a sua contribuição analítica ainda segue viva.
*é cientista político