Breno Rodrigo de Messias Leite*
A política exterior de Lula nos dois primeiros mandatos (2003-2010) foi marcada pelo forte ativismo na arena internacional. Entre acertos e erros, a diplomacia presidencial empregada no período mostrou que o Brasil pode e deve ser um protagonista nos grandes debates internacionais, como representante legítimo dos países emergentes, das potências médias e, é claro, da América do Sul, área de influência e de liderança regional. De fato, sob a lógica do terceiro-mundismo, foi garantido o trânsito do Brasil nas cúpulas e fóruns multilaterais, bem como na sustentação de sua capacidade de negociação, ao priorizar a formação de coalizões com os mais fracos e a imponência estratégica contra os mais ricos. Este foi ponto alto na projeção internacional do país na primeira década do século XXI.
Os dez anos da administração Lula e os dez anos seguintes apresentam dois métodos antagônicos de interação do Brasil no sistema internacional. À época, o Brasil participou como mediador de importantes conflitos internacionais. No período de transição, Lula mediou e colaborou para a demoção de um golpe em curso na Venezuela, que mesmo apoiado pelos EUA, não contou com o apoio do Brasil. Além do mais, o Brasil fez parte da operação de paz da ONU para reconstrução do Haiti depois da crise política que resultou na derrubada do governo de Jean-Bertrand Aristide, em 2004, e da crise humanitária que se seguiu ao terremoto, em 2010. Por fim, mas não menos importante, diz respeito a participação nos acordos de controle de enriquecimento de urânio do Irã, os Acordos de Teerã, em 2010. A diplomacia multilateral do Brasil guiou-se, assim, de modo a assegurar uma vaga permanente no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (CSONU), uma antiga demanda que perdura desde o fim da Segunda Guerra Mundial.
Já no segundo decênio, o Brasil cruzou um período de forte recuo de sua atividade exterior. E, talvez, o motivo principal seja a crescente escalada da longa e, até o momento, interminável crise política brasileira — instabilidade econômica e processo de impeachment (Dilma Rousseff); baixa legitimidade popular (Michel Temer); e rivalidade sectária entre oposição e governo (Jair Bolsonaro) — e um ambiente internacional marcado por transformações sistêmicas, sobretudo a ascensão hegemônica da China e pelo declínio relativo dos EUA.
O início do conflito armado na Ucrânia, no coração da Eurásia, trouxe preocupações adicionais para o sistema internacional. O avanço das tropas russas sobre o território ucraniano escancarou um conflito que até então estava submerso no qual o bloco russo-chinês busca um caminho hegemônico – ordem multipolar – alternativo à dominância global dos Estados Unidos e de seus aliados da OTAN. A nova bipolaridade é inaugurada por este conflito armado no coração da Europa e a posição do Brasil precisa ser entendida à luz destes acontecimentos.
Em recente entrevista para o jornalista Brian Winter, da revista American Quarterly, publicada no dia 23 de março, o chanceler brasileiro Mauro Vieira foi interpelado a respeito do assunto, afinal o país é membro-fundador do BRICS, bloco que conta com a presença de Rússia e China, e, ao mesmo tempo, é um aliados histórico dos EUA (unwritten alliance) e está geograficamente localizado ao sul do continente americano. Na entrevista, o chanceler foi taxativo quanto ao retorno do Brasil ao tabuleiro do xadrez internacional. “O Brasil está de volta” e buscará o seu espaço de protagonismo e liderança nas relações internacionais. Tal postura, obviamente, não permite passividade, o que exige esforços políticos e decisões diplomáticas arriscadas. Ainda na visão de Mauro Vieira, a política externa de Lula III tem como preocupação recuperar a imagem internacional e a capacidade de liderança do Brasil no contexto de mudança do cenário geopolítico.
Ao ser questionado acerca do interesse do presidente da República de fazer parte ou propor um acordo de paz, o chanceler não foi preciso quanto às etapas um plano de negociação da paz. Também foi elusivo ao dizer que condena a invasão da Ucrânia, que vê com preocupação os efeitos da inflação e as ameaças à segurança alimentar caso o conflito se estenda por muitos anos. Ao falar sobre a dificuldade de se fazer um acordo de paz entre dois gigantes diplomáticos, Mauro Vieira chama a atenção para as ótimas relações que o Brasil tem com os EUA e a China. “O que nos orienta é o interesse nacional com base no multilateralismo e o direito internacional. Alinhamentos automáticos não trazem resultados positivos e os resultados só são benéficos quando são de interesse nacional”, conclui o chanceler.
Raramente, diplomatas e estadistas são firmes e categóricos em suas palavras, sobretudo nas suas falar públicas. Na linguagem diplomática, o não-dito é, às vezes, tão ou mais importante que o dito; e os símbolos adicionam um valor especial para a estrutura discursiva, intersubjetiva e estratégica. Em outros termos, a diplomacia de Lula busca liderar uma terceira frente, distante dos EUA e da OTAN, bem como dos interesses do bloco russo-chinês, sem, contudo, comprometer as suas parcerias estratégicas e comerciais com os dois lados do conflito iniciado em fevereiro de 2022.
A proposta brasileira para a criação de um “Clube da Paz” foi duramente criticada. A revista britânica The Economist assim resumiu a estratégia de Lula: “hiperativa, ambiciosa e ingênua”. Parte do conflito, o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, também criticou a proposta de Lula que não inclui a retomada da Crimeia como parte dos domínios da Ucrânia. O lado atlanticista, por sua vez, cobra um posicionamento do Brasil alinhado ao ocidente e que o país seja um fornecedor de munição para o lado ucraniano. A visita do chanceler russo Sergey Lavrov ao Brasil, nos próximos dias, pode incluir mais uma variável na complexa aritmética da diplomacia brasileira neste cenário geopolítico.
A diplomacia brasileira pavimenta o seu movimento na guerra. Ao abandonar a postura diplomática passiva, ao que tudo indica, o Brasil passará a ser mais protagonista, numa linha de não-alinhamento automático e altivo vis-à-vis os atores internacionais envolvidos na disputa. O Brasil é um país grande demais para ficar fora desse jogo por mais difícil, tortuosa e incerta seja a decisão. Sabias foram as palavras do jurista Joaquim Francisco de Assis Brasil, membro da comitiva brasileira na Conferência da Paz da Haia, em 1907, ao dizer que “as nações se movem mais por interesses do que por sentimentos”.
*é cientista político e professor de política internacional do Diplô Manaus