Saramago em sua autobiografia “Pequenas memórias” sentenciou: “Deixa-te levar pela criança que fostes”. Vou, portanto falar sobre as luzes de Agosto. Era iniciar o mês e o sol surgia mais cedo no horizonte. Ardente, expulsava as sombras e assim tinha mais tempo para acordar as flores e os pássaros daqueles dias da Manaus-infante. Um cântico de luz para dias considerados como aziagos. E o adágio popular confirmava essa superstição com o “agosto, mês de desgosto”. Ainda mais se nele houvesse uma sexta-feira treze. Em agosto, na Manaus-do-eu-criança, ocorriam muitos incêndios e a ele era atribuído os sinistros. Jamais pelo causticante verão! Jamais pela imprudência ou negligência de uns! Sempre a asa negra do azar pairando sobre esses trinta e um dias temidos.! No entanto, para mim, era um agosto absoluto. Pleno. Sem limites para alegrias simples Era o agosto do meu nascer. E ele recendia ao aroma de angélicas… Até hoje seu perfume penetrante atravessa as fronteiras inexpugnáveis do tempo passado e rasga o véu do templo de minha memória olfativa e surgem trazidas do Careiro pelas mãos ternas de tio Urbano e se acomodam nos vasos espalhados na casa-de-sobrado-do-eu-criança. No dia de meu nascimento, a casa enchia-se de amigos – sem distinções de classes – desde os que moravam em casa bonita aos que moravam em casas flutuantes no igarapé devasso a lamber o barranco da Jonathas Pedrosa. À mesa, galinhas assadas, pernil, maionese, vatapá e somente guaraná Andrade. Um bolo confeitado coroava a mesa e um “parabéns a você” era cantado com a linguagem das angélicas. Sim, as angélicas, eram o símbolo da simplicidade. E nós, manauenses, ainda éramos cultores do singelo. Aos presentes recebidos estava agregado aquele idioma universal dos sentimentos genuínos. Hoje, língua morta. O esperanto que uns poucos tentam reviver. Não importava que vivêssemos às escuras, (quando a energia elétrica cedia lugar às velas, lampiões, “Aladdins” e lamparinas) Éramos iluminados! E tínhamos luz no olhar! Não importava a carência de tudo! Do trigo, obrigando a filas nas padarias. Da falta de carne e da galinha ser comida de rico. Estávamos saciados! A saciedade vinha do espírito do coletivo que nos animava. Não importava que em nossas comemorações e brincadeiras infantis não houvessem vídeo games e brinquedos eletrônicos! Que não houvessem essa profusão exagerada de balões coloridos do agora, que a criançada estoura com os pés sem piedade, no final de cada festa. Balão, para a menina-de-Agosto era coisa sagrada. Bastava um só! E branco. Como os sentimentos verdadeiros. Balão era para ser tratado com carinho, colocado ao lado da cama e acalentado dia após dia, até a fantasia efêmera da infância morrer em nossos braços já adultos. O fato de ter nascido no dia quinze – dia santo e feriado para os cristãos católicos tornava esse tempo, transcendental como a Assunção da Virgem, essa, a legítima Senhora do dia quinze. O certo e que fui uma menina como Quintana. Solitária. Única filha. Sem irmãos, sem avós. Uma familia diminuta, mas feliz. No colégio, tinha o apelido de “Bolão” por ser gorda até a adolescência. O nome de batismo foi engolido. Discriminação e exclusão. Dos jogos esportivos, das festas escolares e juninas. Refugiava-me num local também solitário e deserto mas carregado de luz: A biblioteca da escola. Amalgamavamos-nos. Ela era, Vésper solitária na imensidão dos espaços. Cintilava! E eu não percebia que a constância dos livros e da leitura legaram ao meu íntimo para sempre as cintilações de Vésper. Essas são as minhas luzes deste mês que o sol incensa em postais de épocas decisivas. Teço parágrafos. Nunca epílogos. E como os pássaros de agosto tembém não esqueço o próprio cântico baixo um sol de Justiça.
CARMEN NOVOA SILVA, é Teóloga e membro da Academia Amazonense de Letras e da Academia Marial do Santuário de Aparecida-SP