Na última segunda-feira, 23 de setembro, no auditório Rio Solimões, do Instituto de Filosofia, Ciências Humanas e Sociais (IFCHS) da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), foi realizado o evento “Márcio Souza em Debate”. O encontro contou com a presença da professora Marilene Corrêa da Silva Freitas e do poeta Aldísio Filgueiras, como debatedores, e com o professor Ademir Ramos atuando como mediador.
Nascido em Manaus, Márcio Souza (1946-2024) foi um dos mais destacados escritores e intelectuais brasileiros, reconhecido sobretudo por sua contribuição à literatura que trata das questões amazônicas e das complexas relações históricas, sociais e culturais da região com o Brasil e o mundo.
Márcio Souza desenvolveu uma obra polissêmica que atravessa diversos gêneros literários, como o romance, o ensaio, a dramaturgia e o teatro, além de ter tido uma participação ativa como crítico cultural, historiador das ideias e gestor cultural. Seus textos revelam um compromisso profundo com a região amazônica e, ao mesmo tempo, um engajamento crítico com as questões que envolvem o Brasil como um todo.
A obra mais famosa de Márcio Souza é, sem dúvida, “Galvez, Imperador do Acre” (1976), um romance histórico que reconstrói, de forma satírica e crítica, os eventos que levaram à Revolução Acriana, movimento que culminou na anexação do Acre ao Brasil em 1903, com o Tratado de Petrópolis. O protagonista, o espanhol Luís Gálvez, é descrito como um aventureiro excêntrico que se autoproclamou imperador de uma região rica em borracha, o “ouro branco” da Belle Époque.
No entanto, Souza vai além do simples relato histórico. Ele utiliza o absurdo e o humor para criticar o imperialismo, o colonialismo e o Estado brasileiro, ao mesmo tempo em que revela as tensões e contradições da sociedade amazônica no final do século XIX. O tom carnavalesco da narrativa subverte a grandiosidade dos acontecimentos históricos, humanizando os personagens e expondo suas fraquezas e temores.
Outro ponto fundamental na produção literária de Souza é o romance “Mad Maria” (1980), que narra a saga da construção da ferrovia Madeira-Mamoré, uma das obras de engenharia mais desafiadoras e mortíferas do período de expansão capitalista no Brasil. A ferrovia, que pretendia ligar o interior da Amazônia ao mercado internacional, é retratada por Souza como um símbolo da destruição ecológica e da exploração humana nas profundezas da floresta amazônica. Mais uma vez, ele constrói um painel de personagens que simbolizam tanto os interesses estrangeiros quanto a resistência indígena na luta pela sobrevivência.
A obra dialoga diretamente com o debate sobre o desenvolvimento capitalista na Amazônia, um tema que permanece atual diante das discussões contemporâneas sobre desmatamento, exploração de recursos naturais, preservação da biodiversidade e mudanças climáticas.
Os dois debatedores examinaram o legado intelectual e o valor literário das obras de Márcio Souza.
Nas palavras da professora Marilene Corrêa, Márcio Souza pode ser visto como um autêntico “produtor social do conhecimento”, alguém que busca conectar dialogicamente a universalidade e a localidade na Amazônia. Souza provocou uma divisão nos estudos sobre a região ao buscar entender profundamente o problema colonial. O diálogo entre Souza e Ribamar Bessa Freire sobre a Amazônia trouxe categorizações decisivas, como a construção conceitual de uma história da Amazônia indígena que nega a visão tradicional da Amazônia lusitana e brasileira.
Outro aspecto importante na vida e obra de Márcio Souza é o seu papel como intelectual público. Ele destacou-se ao produzir conceitos essenciais sobre a Amazônia, revelando suas contradições e impasses na relação com o Brasil, além de explorar a tensão criativa entre o regional e o universal. Toda a obra de Souza, como destacou a professora Marilene, pode — e deve — ser lida como um ensaio sociológico, artístico e poético, integrado a redes intelectuais que buscam definir o caráter nacional da Amazônia.
O poeta Aldísio Filgueiras, por sua vez, ofereceu uma perspectiva memorialística sobre a vida e a obra de Márcio Souza, sublinhando a importância do escritor na construção de uma visão crítica e necessária sobre a Amazônia. Ao longo de sua produção, Márcio Souza confronta narrativas equivocadas que historicamente moldaram a percepção do Brasil, especialmente no que se refere à região amazônica.
Aldísio Filgueiras argumenta pela necessidade urgente de estudar a Amazônia de maneira profunda e autêntica, rompendo com visões simplistas ou coloniais. Pensar de forma disruptiva sobre a realidade amazônica é crucial para quebrar os ciclos de exploração e subordinação a que a região tem sido submetida, tanto no plano material quanto no espiritual, revelando a dependência mútua entre o Brasil e sua floresta. Por meio de sua obra, Souza desafiou o país a reavaliar sua relação com a Amazônia, promovendo uma nova consciência crítica sobre seu valor e complexidade.
Márcio Souza é, sem dúvida, um dos escritores brasileiros mais importantes da segunda metade do século XX e início do XXI. Sua habilidade em utilizar a ficção para repensar a história brasileira, particularmente no que diz respeito à Amazônia, proporciona uma leitura crítica e necessária da relação do Brasil com esse território amazônico. Ao mesmo tempo, sua atuação como intelectual público, gestor cultural e ativista amplifica sua contribuição para a compreensão dos dilemas e desafios que a Amazônia enfrenta ainda hoje, com as queimadas, a seca e a pobreza material. Mais do que um cronista da história amazônica, Márcio Souza é um intérprete do espírito e da alma da região.
*É cientista político.