Mesa de bar

Em: 2 de abril de 2022

Há quanto tempo não nos víamos, meu amor. Perdoe o exagero, queridinha, mas parece que foram décadas. Encantadora como sempre. Bela, distinta, educada, gentil. Minha alegria é tão grande que quase esqueci: esta é Nercíades. Grande amiga, como você. Este encontro me deixa feliz. Tenho certeza de que ainda está com aquele belo e charmoso marido. Continuo com o meu, a quem amo, mas reconheço ser um chato.

Não vai ao shopping comigo. Às sextas-feiras tem a cerveja com os amigos. Aos domingos, joga futebol pela manhã e, à tarde, assiste na TV o jogo do seu time favorito. E você, queridinha? “nada diferente. Os homens são maravilhosos, mas um verdadeiro porre. Tchau, baby, preciso comprar um sapato novo”. Tchauzinho, querida. Não adianta olhar desse jeito, Nercíades. A víbora é uma falsa. Tenho que aturar. Amizade importante.

Grande Mateus. Quanto tempo. E aí, amigão, tudo em cima? Hoje a coisa está animada. Garçom, manda uma “loura suada”. Rapidinho. Conseguiu driblar a sua mulher? Matou alguém?  A avó de quem? Inventou hora extra e colou? Nada. Já sei.  Aniversário de um amigo. Isto aí. Todas as mulheres são iguais. Muda apenas o CPF. Agonia é fazer compras. Agonia são as compras em shopping.

A luz vermelha acesa é o sinal verde para a entrada. As moças postadas nas janelas de casas antigas e maltratadas lançam olhares, gestos e palavras convidativas para os transeuntes. O cliente passa, olha, escolhe e adentra a casa, sem maiores delongas. A luz de neon anuncia o show. No salão, as poltronas confortáveis. As mesas decoradas são irrecusável convite ao prazer. A penumbra e as lâmpadas coloridas abrem as portas da luxúria. Belas mulheres. Escolha a sua.

O telefone toca. Alô. Melcíades? “Sim. Quem fala”? Um amigo que viu a foto que postou e ficou impressionado com tanta beleza. Você tem horário livre hoje? “Claro que sim. Às quinze horas está bom”? Ótimo. Tudo conforme o anúncio? “Exatamente o anunciado. De ponta a ponta”. Mande mensagem indicando o local em que nos encontraremos, a roupa que vestirá e avisarei sobre a minha vestimenta e qual o meu carro. Até mais tarde. “Tchau”.

Cinco situações diversas que, na verdade, retratam a “rotina” do ser humano, camaleão que é, de ajustar-se, encarar a realidade do dia a dia e transitar nos caminhos maquiavélicos que o inserem nas condições divina e demoníaca a um só tempo, enquanto semelhantes. A escolha é inteiramente nossa, e biblicamente a nós imposta pela condição de “livre arbítrio”.

Cinco citações que nada têm a ver uma com a outra. Que motivação me conduziu a tais conjecturas? O que pretendo dizer e expor? O objetivo necessariamente existe, sem o qual minhas palavras e raciocínio se transformariam em coisas vãs, inúteis em seu nascedouro. O bem. O mal. A política. O poder. A democracia. A tirania. A liberdade. A escravidão.

Vivemos em um mundo particular, nosso casulo pessoal, com a obrigação implícita de respeitar o espaço alheio e conviver as benesses do bom relacionamento. Abandonamos o olho no olho, a verdade nua e crua, dolorida, mas capaz de oferecer as melhores soluções para todos os contraditórios. Acatamos os grilhões do politicamente correto para não nos expormos.

Partilhamos um momento ímpar na sociedade brasileira. Desmandos e mais desmandos cometidos à revelia do bom senso e, em alguns casos, da Carta Magna Brasileira. Nova Ordem Mundial? Estupefato, o cidadão observa o desenrolar dos fatos. Os raros surtos de insatisfação transformaram-se em exaltação pacífica e rotina diária. A pujança das riquezas brasileiras apequenou-se pelas consequências funestas de atitudes indesejadas e inconstitucionais vindas de onde não se esperava e de quem, normalmente, não deveríamos imaginar.   

A água do caldeirão aqueceu, fervilhou e criou um ambiente de dúvidas e de medo. A sociedade não mais suporta o prenúncio do caos. Vai às ruas. Pede. Grita. Exige. Finalmente, impõe e avaliza o posicionamento, mesmo drástico, de quem a representa de fato e de direito, pelo sufrágio dos votos. O recado foi dado. “Consumatum est”. Não há vias de retorno. 7 de setembro de 2021 notabilizou-se pelos milhões de brasileiros em cada pedaço de rua, becos e esquinas. A mensagem patriótica foi límpida como as águas do Ipiranga.

O Brasil e as outras nações foram invadidos pela manifestação ordeira, democrática e pacífica, sem o clamor dos artigos mais decantados da Constituição, fazendo ecoar o grito de paz e de determinação para caminhar pelos canteiros floridos da Nação Brasileira. O povo, unido, retornou a seus afazeres, certo de que as mudanças comportamentais por ele impostas se tornariam imprescindíveis.

Não há mais tempo para as hipocrisias e os engodos. A falsa amizade desnudou-se e veio à tona. O marido descobriu que é um “porre”. A mulher já sabe que é “um saco” e que o marido estava à mesa de um bar, saboreando uma apetitosa “loura suada” bem gelada. Todos sabemos que a luz vermelha, as luzes de neon e os telefonemas discretos produzem semelhantes resultados, com a única diferença do local onde acontecem. A essência dos fatos é similar.

Os dias passam. As principais mudanças não ocorrem. Pelo menos a olhos vistos. Os inimigos da Pátria aumentam o tom da voz. O que virá? As mentiras continuam a ser ditas de forma deslavada, apresentando uma imagem somente vista pelos detratores da Nação, gritando aos quatro ventos que 7 de setembro foi um fracasso popular. Talvez venha a ser, caso o fétido vômito contido em suas afirmações surreais não receberem o exato contraponto da justiça. 

Liberdade de expressão difere diametralmente de calúnias e mentiras deslavadas. Estas são criminosas. Aquelas, direito inalienável. A festa cívica do último 7 de setembro somente terá sido um fracasso se chegarmos a 2022 sem as mudanças necessárias nos âmbitos político, social e econômico. 

A derrota virá se não tivermos urnas confiáveis. Se não extirparmos, a ferro e brasa os desmandos dos cavaleiros do apocalipse protegidos por togas do olimpo. Se não mudarmos as regras de representatividade do legislativo tendencioso, protegido nas muralhas da imunidade parlamentar, que mais se assemelha à impunidade, pelas quais torna-se impossível responder pelas acusações legítimas que lhes são impostas por cometimento de atos lesivos ao Estado Democrático de Direito e, consequentemente, ao Brasil.

7 de setembro será fracasso se os julgamentos e condenação dos “homens importantes” forem anulados e tivermos que indenizar cada criminoso; se formos obrigados a empurrar garganta adentro, o “voto eletrônico” da forma que é, com a certeza de que a quase totalidade dos homens da casa do povo verdadeiramente não nos representam. Se assim for, caros amigos do JCAM, preparemo-nos para a escravidão em massa, onde uma casta, e quem sabe um de nós fará parte dela, usufruirá das benesses do luxo e da “honorabilidade” e o povo será devidamente “comunizado” em vala única e transformado em plebe única e servil. 

Recordo de uma das crônicas por mim escritas e publicadas no JCAM, na qual aproveito o sentido da letra de uma música famosa para demonstrar que, em nosso universo, tudo é senoidal e  repetitivo, mudando tão somente o período e os CPF, posto que os deuses e demônios em nós contidos permanecem ativos milênios afora, transformando o planeta Terra em verdadeiro hospício, cujos pacientes somos nós, ditos humanos, loucos nas incoerências e  taras, capazes, porém, de amar com a intensidade da entrega total.

7 de setembro de 2021 terá sido um fracasso de manifestação popular se o único homem dentre nós, com coragem suficiente para, solitário à Crusoé, a desafiar o sistema de corrupção, vier a sucumbir, quer pela picada da mosca azul, diz o ditado, por enfraquecimento natural diante das tantas facadas recebidas no dia a dia, mas principalmente as virtuais, e o povo, que somos todos, e cada um de nós, desistirmos de lutar e o abandonemos a meio caminho do campo de batalha ou, o que seria pior, a sua rendição ao inimigo por compactuação.

 Não há tréguas ou caminhos de retorno. Não somos “homens da caverna”. “Evoluímos”.  A minha geração envelheceu. Pouco tempo teremos para sofrer e nos revoltar. Pouca força nós teremos para reagir. Mesmo assim, temos plena consciência do atual estado de coisas e daquilo que virá em decorrência da nossa inércia e submissão, o que nos oferece a ampla visão de todas as consequências que advirão para as futuras gerações. Liberdade ou escravidão. Livre Arbítrio. A escolha é nossa.       

João Suzano

é escritor
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