Breno Rodrigo de Messias Leite*
O falecimento de Mikhail Gorbachev, aos 92 anos, encerrou um período histórico de profundo significado para a recente política internacional. Afinal, Gorbachev foi não tão somente último líder da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), mas o principal responsável por acelerar o seu colapso e de transformar a Rússia numa nação enfraquecida no contexto do mundo pós-Guerra Fria.
Ao chegar ao poder em 1985, Gorbachev encontrou a URSS em uma profunda crise. Na Era Brejnev (1964-82), o modelo soviético de planejamento econômico centralizado começou a dar os primeiros sinais de exaustão, pois tentava combinar a expansão de máquinas e força de trabalho sem a necessária inovação tecnológica. O modelo incentivava o impulso produtivista sem ser capaz de, ao mesmo tempo, garantir eficiência e competitividades nos grandes mercados internacionais dominados, à época, por Estados Unidos e Japão, nações pioneiras da Terceira Revolução Industrial. Os problemas enfrentados pela indústria de transformação atingiram igualmente a agricultura coletivizada (ainda do período stalinista), tornando-a ineficiente e incapaz de suprir as demandas alimentares e nutricionais mais elementares da população soviética.
A eleição do presidente norte-americano Ronald Reagan, em 1980, foi uma ruptura de paradigmas e, em termos práticos, pôs fim a coexistência pacífica – a desejada détente entre as duas superpotências – e elevou ainda mais a tensão militar e geoestratégica no âmbito da política internacional com uma radical posição antissoviética e anticomunista no âmbito doméstico. Reagan reacendeu as chamas da Guerra Fria ao dar início a Iniciativa de Defesa Estratégica – um sofisticado sistema de defesa antimíssil – apelidada de Guerra nas Estrelas. A reativação da corrida armamentista contribuiu para acelerar a drenagem de recursos da já combalida economia soviética para o setor de defesa das forças armadas. A lei econômica que assegurar a incapacidade de uma economia produzir eficazmente canhões e manteigas provou-se, mais uma vez, verdadeira.
O sucessor de Yuri Andropov (1982-1984) e Konstantin Chernenko (1984-1985), quadros envelhecidos da velha burocracia do partido comunista, Mikhail Gorbachev, o primeiro e último líder nascido depois da Revolução Russa de 1917, tomou o poder, aos 57 anos, com a promessa de renovar a rejuvenescer o partido e a URSS. O novo dirigente propôs dois projetos de transformação das estruturas burocráticas do partido. O primeiro projeto, a glasnost, teria como significado a abertura política e a transparência das instituições. E, de modo complementar, a perestroika, visava reformar o modelo econômico de planejamento centralizado.
Glasnost e perestroika funcionaram como uma verdadeira bússola a respeitos das verdadeiras intenções dos soviéticos e, também, sobre a capacidade de Gorbachev de propor e avançar com a agenda de reformas mesmo sob as pressões internas dos burocratas do partido, das repúblicas autônomas e nacionalidades submetidas igualmente à “cortina de ferro” e que buscavam, mais do que nunca, autonomia em relação ao Kremlin.
Responsabilizar Gorbachev pela dissolução da URSS, no meu entendimento, parece ser um erro de percepção elementar. Um único homem, uma única vontade, não é capaz de desmontar um país inteiro. É o próprio país espiritual da URSS, Karl Marx, em o 18 Brumário de Louis Bonaparte, quem diz que “os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha, e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”.
O fim da URSS não foi causado pela ação interna de um homem ou pela resultante conflitiva da Guerra Fria, mas justamente pela incapacidade do aparato soviético de funcionar, de responder às demandas e às reformas de suas instituições. As contradições entre as forças produtivas e as relações sociais de produção causaram uma aguda crise de legitimidade na superestrutura autoritária já exaurida. A URSS foi implodida e devorada pelas suas próprias contradições. A luta de classe como motor da história não resistiu à lei da entropia.
*é cientista político e professor de política internacional do Diplô Manaus.