Anderson F. Fonseca. Professor de Direito Constitucional. Advogado. Especialista em Comércio Exterior e ZFM.
Segundo a história, na noite de 14 de abril de 1912 o navio RMS Titanic colidiu com um iceberg em sua viagem inaugural. Duas horas e quarenta minutos depois veio a pique, resultando na perda de 1.501 vidas, mais de dois terços dos seus 2.207 passageiros e tripulação. Nesta ocasião, veio a ser usada a famosa frase já consagrada na tradição naval, posteriormente adotada mediante convenção internacional do Direito da Guerra: “mulheres e crianças primeiro”.
De acordo com o costume internacional, consolidado pela Assembleia Geral das Nações Unidas na Declaração sobre a Proteção de Mulheres e Crianças em Emergências e Conflitos Armados, de 14 de dezembro de 1974 “Ataques (…) especialmente a mulheres e crianças, que são os membros mais vulneráveis da população, são proibidos, e por isso devem ser condenados”.
Partindo desta premissa de que de tempos imemoriais a humanidade já chegou a conclusão de que mulheres e crianças devem ter um tratamento adequado e diferenciado quando em momentos de condições extremas, situações em que vida e morte estão presentes por um fio, que por sua natureza devem ser preservados em primeiro lugar, como começar a compreender as situações que nos chegam nesta semana envolvendo justamente os direitos das crianças e mulheres.
A esta altura todos os periódicos nacionais e quiça internacionais noticiaram o agora notório fato da criança de 11 anos grávida de seu estuprador, cuja liberade lhe foi retirada ao ser colocada em abrigo, impedida de realizar o aborto legal pela juíza do TJSC ao, segundo relatos, induzir a menina a não realizar o procedimento e afastá-la do lar para evitar que a mãe procurasse este caminho. Situação esta, diga-se, realizada com a anuência do Ministério Público.
O outro extremo temos a procuradora-geral do Município de Registro/SP, Gabriela Samadello, em um vídeo circulando pelas redes, sendo agredida fisicamente pelo procurador Demétrius Macedo. De acordo com o relato do Boletim de Ocorrência a razão das agressões teria sido a abertura de processo administrativo disciplinar (PAD) em relação a conduta do agressor. Em dito episódio o procurador não somente agride sua então chefe como também uma funcionária da Procuradoria que tenta conter a situação.
Os fatos em si chocam por diversas questões e evocam os mais distintos posicionamentos a respeito da falha do sistema de justiça de nosso país e as consequências indeléveis a cada um dos protagonistas, contudo, o que chama a atenção deste que vos escreve é não somente o total despreparo com que estas situações foram encaradas, mas a pecha de “normalidade”com que estas ocorreram.
Por coincidência ou obra do destino nesta segunda-feira última (20) participei de um jogo amistoso na Arena da Amazônia com o bom amigo e promotor de Justiça de MG Casé Fortes, no meu sentir o papa do combate à pedofilia e a violência contra a criança no Brasil, veio prestigiar este evento organizado por outra boa amiga da Comissão de Direito de Família da OAB Luíza Simonetti, um meio de chamar a atenção para a causa das crianças, neste ano de um lado o time Adoção e de outro o Vacinação.
Pois bem, afora o evento futebolístico em que jogamos pelo time Vacinação, tive a oportunidade de mais uma vez conversar com Casé sobre os avanços ou retrocessos nas políticas públicas de combate às diversas formas de violência contra crianças e adolescentes, duas situações sobressairiam de nosso bate-papo.
A primeira delas diz respeito infelizmente ao aumento de casos, em virtude dos anos pandêmicos muitas crianças foram afastadas do principal local em que estas violações são detectadas, a escola. A segunda delas, em que pese significativos avanços, é o despreparo do poder público em todos os níveis para tratar destas questões, a começar pela formação, nossos presentes e futuros bacharéis em Direito, Medicina, Enfermagem, Pedagogia não tem em seus respectivos cursos qualquer disciplina que trate especificamente de violência ou como lidar em casos como estes, carecendo portanto da necessária participação da academia neste mister.
Pra fechar, no caso da agressão a procuradora-geral do município de Registro/SP, no âmbito da Ordem dos Advogados do Brasil desde 2011 há uma Súmula do Conselho Federal que diz que o Bacharel em Direito acusado de violência doméstica contra mulheres, crianças, idosos e homossexuais será considerado inidôneo para ter deferida sua inscrição nos quadros da Ordem.
Durante minha passagem como procurador-geral do Tribunal de Ética e Disciplina da Seccional Amazonas da Ordem (2019-2021) estabeleci e defendi até meu último dia no cargo a tese de que se a mencionada Súmula pode ser aplicada aos bacharéis que procuram entrar no rol de advogados, a mesma deveria nortear os casos de Advogados que são agressores, sendo-lhes então aplicada a pena de exclusão.
Sem nunca deixar de respeitar os direitos dos pretensos agressores, com algum sucesso pudemos defender o direito de mulheres e crianças vítimas de agressão, estabelecendo um trabalho pioneiro com a criação de uma Procuradoria especializada para estes casos, devendo aqui saudar a nossa procuradora Fabiana Silva por sua dedicação também a esta causa.
Longe de resolver todos os problemas que temos visto se já lembrarmos no que tange à violência que devemos tratar com a devida paridade mulheres e crianças primeiro já teremos de muito avançado.