Chegando mais uma vez o Natal num mundo quase – dois-milênios. Esses milênios cristãos de um mundo imortal e às vezes pretensamente onisciente, quando, fingindo esquecer-se das passadas gerações que com ele conviveram em doce intimidade e idealismo, me diz que o hoje não é tempo de poesia tradicionalística mas, tempo da genialidade das máquinas inovadoras. Eis que vem chegando mais um Natal nesta Manaus ainda-cheia-de-graça. Manaus que escarnece de mim -súdito fiel dessa que foi “Roma triunfante no ânimo e na riqueza” – quando lastimo a perda das marcas grandiosas de seu ontem que materializavam, através da lira da religiosidade, o invisível universo da que chamo, mitologia cristã. Sim, seja benvindo mais um Natal! E com ele, sempre aquela mesma presença exultante de luzes e cores, de sons e símbolos, de carrinhos e bonecas, de vinhos e nozes, de apressados carros na terra e de infalíveis trenós nos céus… Tudo isso sem que a época atual dê boas-vindas às lusas pastorinhas e tampouco aos gloriosos sinos da missa do galo… Digam-me pois, quem ousou dizer o “Consumatum Est” aos pastoris da Manaus que eu quero cheia de graça? Qual a doença social, impôs os santos óleos na Boa-Nova trazida pelos sinos da meia-noite? Eu, insone, perante essa longa sesta de muitos à sombra de suas preciosidades históricas, de sinos e autos de natal, sei das sublimes aspirações da ancestralidade, em alcançar o eterno, no erigir esse memorial de Dezembros. E é esse panteão, que o ensandecido Cesarismo da modernidade, vendo minha resistência, exige que eu profane, renegando a fénas raízes da história; Que diga o “Ave, César” ao vilepêndio dos já escassos prodígios de arte e das típicas, européicas e sagradas tradições, e que venda por trinta dinheiros à era calculista, o divino Espírito do Natal recolhido ao Getsêmani do peito. Mas, não me falta esse paráclito de afetividade que me incita a missionar nas estranhas línguas dos novos tempos. A estas gentias idades, que a força idealística me impulsiona a convertê-las, na verdadeira e única crença das melódicas cornamusas e dos cânticos dos bronzes. Mesmo faltando essa genuína expressão de fervor popular, ainda assim ensaio um Glória a Manaus que eu-quero-toda-cheia-de-graça: Sim, Glória seja dada àquelas representações das Pastorinhas que o povo exibia em personagens tanto sacros quando profanos, entremeadas de músicas e danças e louvores, mas que tinha o propósito, o santo propósito, de reavivar nos íntimos a memória da natividade de Jesus. Glória se dê as figuras alegóricas de toda estrela-guia ou toda pastora, todo anjo ou toda cigana, que circundavam as imagens de uma gruta de Belém. Onde, se presépio-vivo, todas Marias queriam ser aquela Maria do Sim e ninguém, nem o mais frio ou o mais ateu dos seres humanos, queria para si, a trindade infernal da fumaça-enxofre dos alçapões. Glória também, ao que no início foi legado jesuítico e depois transmissão de arte popular de lusos já manauaras que, com os limitados recursos de então, ofereciam, do natal ao dia de reis, o belo espetáculo de exaltação religiosa… Glória mesmo assim, ao que um dia foi o lusitano monastério que através da moralidade de suas cenas me ensinou os princípios da fraternidade e a distinção entre a caridade fraterna, feita como um sorriso escondido sob um véu, descoberto somente para o Menino e a dos alçapões fumacentos, executada em ostensivos andores farisaicos. Glória e glória mais uma vez àqueles que não se entregaram aos vícios do evolucionismo, e não encarceraram no claustro do esquecimento o ingênuo canto das pastorinhas, e aos que na noite de natal resolverem não mais pagar aos Césares o pesado tributo do Silêncio dos Campanários. E nesta minha cidade, que eu quero de Boa-Vontade, que quero cheia-de-graça, cidade que é também de Maria do Magnificat, ouça-se como antes, e quem sabe como nunca, todo o excelso repicar dos sinos de nossas igrejas.
CARMEN NOVOA SILVA, é Teóloga e membro da Academia Amazonense de Letras e da Academia Marial do Santuário Nacional de Aparecida-SP
