22 de novembro de 2024

O cheiro da mata

Em janeiro de 2024 o professor Caraíba estava em São Gabriel da Cachoeira ministrando aula de Filosofia na Universidade do Estado do Amazonas – UEA, quando um jovem se aproximou e começou a falar: 

“Professor, não existe impressão olfativa mais agradável no mundo do que o cheiro da mata, o aroma emanado das folhas, da terra molhada, das raízes das árvores, dos peixes, das plantas, frutas maduras, do vento que espalha o aroma pela mata, o senhor já sentiu?

Como é agradável observar à correnteza das águas, o choro das ondas, o canto dos pássaros, os frutos que caem e estouram no chão, as sementes, as castanheiras floradas anunciando muita fruta, os insetos que se alimentam das sementes, os animais que comem os frutos, que se alimentam das frutas caídas, o senhor já observou?

Como é terapêutico o barulho das cachoeiras, o equilíbrio das vazantes, as enchentes dos rios, o gemido dos ventos, o segredo da noite, o vento balançando as folhas, o uivo da onça pintada, o vagalume piscando na noite escura, o sabiá cantando, o estouro das queixadas, a algazarra dos macacos barrigudos, o senhor já ouviu?

Professor, de todos os cheiros que compõem a sinfonia da vida, nenhuma perfumaria mais famosa do mundo, como, por exemplo, a Chanel, Azzaro, Duty Cabana, Muriel, Paris Bleu, se compara ao cheiro da nossa floresta, das frutas maduras, dos insetos, dos bichos no cio, do cheiro da mata, da nossa gente, da nossa culinária, o senhor já experimentou?  

Nunca foi e nunca será um problema para nós indígenas cuidar da fauna e da flora, dos jacarés, das serpentes, das sucuris, dos sapos, das rãs, das pererecas, dos tucanos, das araras, do galo-da-serra, das formigas, das mariposas, das borboletas, dos besouros, etc., porque o meio ambiente é a nossa casa, o senhor acha que somos inúteis?

O que nos preocupa é a ganância do homem branco, do corte de madeira, do garimpo ilegal, da contaminação dos rios, do uso de drogas, do alcoolismo, do chão seco, do tiro de espingarda, da poeira dos caminhões, dos tratores, da floresta pegando fogo, da plantação de capim, da cerca de arame, da criação de gado, da plantação de soja.

Professor, todos os meus parentes, os Tukanos, os Baniwas, os Yanomamis, os Kayapós, os Arapasos, os Desanas, os Tuyucas, os Barés, precisam de ajuda. A maioria das crianças, dos adolescentes, dos idosos, das grávidas, sofre por falta de alimentação saudável, rica em proteínas, mineras e vitaminas.  

Para o nosso povo falta quase tudo, só não falta à esperança de dias melhores; a certeza de que ainda teremos acesso ao tratamento de saúde, a educação, transporte e ao divertimento saudável. Também nunca nos faltou gratidão e respeito pelos que veem para somar, para nos ajudar, o senhor acredita na gente?

Somos felizes como somos, do nosso jeito, da nossa falar, do nosso cantar, orar, pescar, trabalhar; não precisamos de quase nada do homem branco, somos um povo forte e corajoso; sabe o que nos define professor? o amor; o amor pela terra, pela natureza, pela cultura, por nossa gente”.

Dizendo isso ele se calou. Fez-se um silêncio sepulcral. Parecia que ele não pertencia mais a este mundo. Seu espírito estava longe, vagando sobre a copa das árvores. 

– “Desculpa se eu falei alguma bobagem, professor”.

– “Imagina! Você foi simplesmente genial” – agradeci.

Por fim, vale destacar que este relato foi feito numa sala de aula e o assunto versava a respeito dos mitos e lendas amazônicos. 

Luís Lemos

É filósofo, professor universitário e escritor, autor, entre outras obras, de "Filhos da Quarentena: A esperança de viver novamente", Editora Viseu, 2021.

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