23 de novembro de 2024

O ouro negro, a servidão e a solidão: os seringais

Fábio Augusto de Carvalho Pedrosa

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Crédito: Divulgação

Os seringais tiveram a mesma importância vital para a região Amazônica que os canaviais tiveram para o Nordeste e os cafezais para o Sudeste. Foram o sustentáculo da economia regional por décadas a fio, fonte de sustento de milhares de famílias naturais da Amazônia ou formadas com o advento da migração nordestina para a região. Nesse pequeno texto foram analisadas suas origens, estrutura e cotidiano.

Nos jornais de época – 1880/1900 – encontramos anúncios de venda e arrendamento de seringais e de contratação de trabalhadores para exercerem a penosa atividade da extração do látex e sua transformação em borracha. Os comerciantes Ramos, Couto, Barata & Cia, liquidando seus negócios em 1888, colocaram a venda um seringal no rio Inauini, “contando mais de oitocentas estradas de seringueiras, abertas e terreno explorado para mais de duzentas, tendo duas casas de sobrado cobertas de telha de barro, dois barracões cobertos de zinco e tres barracões de palha, alguma creação de gado vaccum, e muita plantação de arvores frutiferas” (A PROVÍNCIA DO AMAZONAS, 06/04/1888, p. 03). Em 1900, no início da expansão das atividades, a casa comercial de Pereira Júnior & Cia, localizada na rua dos Remédios (atual Miranda Leão), em Manaus, contratava cerca de 100 homens para trabalhar como seringueiros no rio Purus (AMAZONAS COMMERCIAL, 26/05/1900, p. 03). A importância dos seringais também pode ser verificada na imprensa humorística, como em uma “denúncia” divulgada pelo jornal A Lanceta, de Manaus: “Que um certo ex-empregado de uma importante casa commercial, está tentando adquirir o coração de uma pequena, só porque o papae, tem seringal e é baludo” (A LANCETA, 21/09/1912, p. 03).

Mas como surgiam os seringais? De acordo com o historiador Leandro Tocantins, em O rio comanda a vida (1968), eles eram fruto da iniciativa privada, empreendimentos particulares de ocupação do solo. “Se a zona oferecia quantidade de árvores produtoras de leite, aí lançavam os fundamentos da posse – a barraca, evolução do tapiri do índio”. Existia um código entre os aventureiros, o de se “respeitar” os seringais já ocupados. Isso nem sempre acontecia. Verificada a disponibilidade do terreno, prosseguia-se ao estabelecimento dos domínios com a construção do barracão, a residência do patrão, o seringalista. Essa construção, aponta Tocantins, teve a mesma função que a casa grande do Nordeste açucareiro, centralizando a vida econômica e social da unidade produtiva. Tocantins afirma que a ocupação era feita à margem do Estado, mas em periódicos e relatórios encontramos pedidos, demarcações e registros de posse conferidos pelo poder público.

Deve-se destacar a figura do patrão, o seringalista, hora vivendo no barracão, hora transitando pelas cidades de Manaus e Belém a negociar com as casas aviadoras. Samuel Benchimol explica, na obra Amazônia – Formação Social e Cultural (1999), que muitos seringalistas eram nordestinos que começaram suas vidas como seringueiros brabos, sem experiência, e aos poucos foram ascendendo socialmente, assumindo novos cargos no seringal até conseguir formar o seu próprio. Sobre ser conhecido como coronel, Benchimol explica que alguns de fato tinham essa patente conferida pela Guarda Nacional, enquanto outros a compravam ou, dado o prestígio econômico, eram conhecidos como coronéis sem ter esse título.

A organização interna dos seringais, conforme estudos do cientista social Carlos Corrêa Teixeira em Servidão Humana na Selva – O Aviamento e o Barracão nos Seringais da Amazônia (2009), era dividida da seguinte forma: Pessoal burocrático, formado pelos gerentes e encarregados dos depósitos; Pessoal de campo, que eram os comboieiros e os fiscais; Os empregados de campo e os diaristas; e, por último, o pessoal da mata, que eram os seringueiros. Os gerentes e encarregados cuidavam da gerência, garantindo o bom funcionamento do local. Os comboieiros cuidavam do transporte de mercadorias nos seringais. Os fiscais garantiam o bom desempenho do trabalho dos seringueiros, exercendo controle sobre os homens e garantindo que fossem, pela vigilância, produtivos. Os empregados de campo trabalhavam na limpeza das estradas de seringueiras, na conservação das mercadorias e organização dos depósitos. Os diaristas prestavam serviços ao barracão, estando nessa categoria os caçadores e pescadores que proviam o local de mantimentos. Os seringueiros eram a força de trabalho, os elementos que, junto das seringueiras, davam sentido aos seringais. O historiador Francisco Jorge dos Santos, autor de História do Amazonas (2007), cita ainda a presença dos guarda-livros, que cuidavam da contabilidade; dos caixeiros, que cuidavam dos armazéns e barracões; dos mateiros, especialistas na identificação das árvores ideais para extração do látex; os toqueiros, que preparavam as estradas; e dos regatões, comerciantes fluviais. Esses últimos eram inimigos dos seringalistas, pois como registrou o geógrafo Jacob Binsztok, no estudo O Regatão (1965), eles quebravam “[…] o monopólio exercido pelo “barracão”, negociando com os caboclos os produtos extrativos vegetais, desviados habilmente dos “patrões”.

Sinfonia elástica de uma economia predatória

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Em síntese feita por Francisco Jorge dos Santos, a geografia do seringal era constituída pelas estradas, os tapiris e os barracões. As estradas de seringueiras tinham como ponto de partida e chegada o tapiri, onde o látex era defumado e transformado em borracha. O barracão principal, como vimos, era a residência do seringalista, enquanto os barracões menores eram construídos para servir de depósitos e escritórios. Alguns deles tinham capela e cemitério. Era extremamente necessário que o seringal estivesse próximo ou à margem de um rio, para escoar a produção e receber os mantimentos necessários para o seu funcionamento.

A economia centrada nos seringais era altamente predatória. Em mensagem do Governo do Estado do Amazonas datada de 1901, a atividade dos seringueiros no interior é descrita como uma sinfonia elástica, com os trabalhadores deslocando-se de região em região em busca de seringueiras e deixando um rastro de destruição, pois logo que as árvores se esgotavam, abandonavam o local em busca de outras, deixando para trás “uma barraca arruinada e em torno o seringal exhausto!” (MENSAGEM, 15/01/1901). Predatórios mas altamente rentáveis, os seringais atraíam inúmeras pessoas, que deixavam suas atividades cotidianas, a agricultura, a coleta e a pesca, para trabalhar na extração do látex. Desde os tempos da Província que as autoridades reclamavam da constante fuga de braços para a atividade gomífera. Em 1857 o Presidente Ângelo Thomaz do Amaral registrou que o cultivo de cacau e café não se desenvolvia tanto porque “os braços applicam-se principalmente á colheita de castanha e drogas medicinaes, á extracção de oleos e da borracha” (FALA, 01/10/1857, p. 51).

A mão de obra, nos primeiros tempos de exploração, era nativa, sendo empregado o trabalho  de indígenas e de mestiços, bem representados em desenhos do engenheiro, fotógrafo e pintor alemão Franz Keller-Leuzinger. Era uma mão de obra escassa, dada a baixa densidade demográfica da região. No entanto, entre o final da década de 1870 e a década de 1880, destaca o historiador Caio Prado Júnior no livro História Econômica do Brasil (1970), com as secas prolongadas na região Nordeste, “[…] estabelece-se uma forte corrente migratória daí para o Amazonas”. Samuel Benchimol, em obra anteriormente citada, nos apresenta números da entrada de imigrantes nordestinos na região Amazônica: “As secas de 1877 e 1878 deslocaram 19.910 retirantes. Em 1892 as entradas registraram uma imigração de 13.593 nordestinos. No triênio 1898/1900, nos portos de Belém e Manaus, entraram 88.709 migrantes no auge do movimento povoador. Contados os números até 1900, teríamos um afluxo de 158.125 nordestinos que vieram fazer a Amazônia, cerca de 20% da população da época. De 1900, passando pelo apogeu de 1910, até à depressão, estimamos que a Amazônia recebeu mais de 150.000 cearenses, totalizando assim 300.000 imigrantes nordestinos, no período de 1877 a 1920”.

Para os seringueiros os seringais eram, além de seus locais de trabalho, suas prisões, administradas com mãos de ferro pelos seringalistas. O aprisionamento dos homens ao seringal, explica Caio Prado Júnior, começava logo que eles eram contratados, pois eles já vinham de suas terras natais endividados, devendo as passagens, e ao chegar adquiriam seus instrumentos de trabalho no próprio seringal e através de crédito. Os gêneros alimentícios também eram comprados no próprio seringal. Tudo vendido por preços astronômicos. Com um parco vencimento e endividados com o seringalista, os trabalhadores se viam privados de liberdade. A mão de obra era explorada até o esgotamento. O escritor Euclides da Cunha, no clássico À Margem da História (1909), definiu o seringueiro como o homem que trabalha para escravizar-se. Os sonhos de melhoria de vida davam lugar à exaustão, ao desespero, à raiva e frustração. 

Brigas, tentativas de homicídio e assassinatos

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Os seringais, em sua maioria, eram locais violentos, sendo frequentemente palcos de brigas, tentativas de homicídio e assassinatos. Em 1910 o gerente do seringal Manixy, no baixo Juruá, mandou espancar um seringueiro após se desentender com ele (CORREIO DO NORTE, 28/01/1910, p. 01). A reintegração de posse de dois seringais em Lábrea invadidos por Miguel Milerio de Vasconcelos e pertencentes a Jacob da Costa Gadelha, em 1910, terminou com a morte de três soldados, do encarregado de um dos seringais e três seringueiros (MENSAGEM, 10/07/1910, p. 17). Em 1913, quando voltava de uma estrada, o seringueiro de nome André, do seringal Boa Esperança, no rio Madeira, foi atacado por índios parintintins, que o decapitaram (JORNAL DO COMMERCIO, 04/01/1913, p. 01). Por volta de 1916, no seringal Forte-Veneza, localizado no alto do rio Javari, um seringueiro assassinou seu companheiro de trabalho e o enterrou na entrada da barraca que dividiam (O JAVARY, 08/10/1916, p. 02). Inúmeras páginas poderiam ser dedicadas a esse banho de sangue diário, sangue de amazonenses e nordestinos.

Para enfrentar a solidão dominante na selva e amenizar, mesmo que por alguns instantes, as agruras da vida, os seringueiros ingeriam, em grandes quantidades, aguardente, que figurava entre os principais itens de suas listas de aquisições nos barracões. O sexo também era uma necessidade. A presença feminina nos seringais era rarefeita. Eles eram espaços quase que inteiramente masculinos. O sociólogo Márcio Souza, na sua Breve História da Amazônia (1994), registra que “[…] a contrapartida feminina chegava sob a forma degradante da prostituição. Mulheres velhas, doentes, em número tão pequeno que mal chegavam para todos os homens, eram comercializadas a preço aviltante”.

Os seringais tiveram importância imensurável para a região Amazônica na virada do século XIX para o XX. Enquanto as negociações eram feitas nas cidades de Manaus e Belém, a produção se desenrolava nas matas interioranas, palco de dramas anônimos que, não raramente, acabavam ganhando as páginas dos jornais, hoje servindo de fonte para historiadores e cientistas sociais. Mesmo após a crise do sistema de produção gomífera, continuaram existindo, dominando a paisagem com suas barracas e barracões, símbolos de riqueza e também de desilusões.

Fábio Augusto Carvalho

é historiador

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