A redemocratização brasileira, iniciada no começo da década de 1980 e concluída com a eleição do primeiro presidente pós-ditadura, Fernando Collor, envolto num jovial personalismo, resetou a legitimidade constitucional no dinamismo do processo eleitoral brasileiro. No espírito do que acontecia nos EUA, sobretudo nas eleições majoritárias para os governos estaduais e presidência da República, a técnica publicitária e o marketing eleitoral passam a dar as cartas na definição dos termos que deveriam ser debatidos na corrida eleitoral como um todo. Os marqueteiros – os novos intelectuais orgânicos da democracia brasileira – tornaram-se figuras únicas, os novos sacerdotes da comunicação de massas, capazes de transformar os seus clientes – os presidenciáveis – em produtos eleitoralmente viáveis.
O economista austríaco Joseph Schumpeter, em seu clássico Capitalismo, Socialismo e Democracia, escrito originalmente em 1942, descreve com precisão a ascensão da estratégia da guerra publicitária nos processos eleitorais. Nas palavras de Schumpeter, “o partido é um grupo cujos membros resolvem agir de maneira concentrada na luta competitiva pelo poder político. Se não fosse assim, seria impossível aos diversos partidos adotar exatamente, ou quase exatamente, os mesmos programas. E isso acontece, como todos sabem. Partido e máquina eleitoral constituem simplesmente a reação ao fato de que a massa eleitoral é incapaz de outra ação que não o estouro da boiada. Representam, por conseguinte, uma tentativa de regular a luta eleitoral da maneira exatamente semelhante à que encontramos nas associações patronais de comércio. A psicotécnica da administração e da propaganda partidária, slogans e marchas patrióticas não constituem, pois, acessórios, mas a própria essência da política. Da mesma maneira, o chefe político.”
Assim, reinstaurada a democracia, consolidadas as regras eleitorais e as elites políticas agora devidamente lotadas em rótulos partidários, observamos que nos últimos trinta anos alguns aparentes consensos foram formados sobre o que se deve e o que não se deve debater numa corrida eleitoral. Os estrategistas são categóricos quanto à importância de se falar sobre emprego e renda, saúde e educação, segurança pública e políticas de bem-estar etc. Os mesmos reforçam o alerta no qual o eleitorado teria certa aversão aos temas mais distantes de sua realidade, da sua experiência cotidiana. Assim, temas como defesa, segurança nacional, questões estratégicas e política externa, por exemplo, deveriam ser vistos como anátemas num debate presidencial.
No entanto, as aceleradas transformações nos fundamentos macrossociais da ordem internacional, que passam necessariamente pelo desmonte do mundo liberal, marcadamente pós-ocidental e pós-americano, colocam decisivamente em xeque as velhas verdades, os antigos consensos amplamente aceitos. Hoje, mais do que nunca, temas outrora sem importância para as elites políticas passaram a fazer parte do portfólio estratégico dos candidatos das mais diferentes colorações ideológicas. A universalização de temas como meio ambiente, gênero, direitos humanos, imigração, racismo, feminismo, direitos dos povos tradicionais, entre tantos outros, passaram a fazer parte da opinião pública e, por conseguinte, da agenda eleitoral candidatos. A inserção dos temas do pós-Guerra Fria chegam, em definitivo, no palanque eleitoral.
A internacionalização da pauta eleitoral brasileira é um fato e tudo leva a crer que daremos um passo fundamental na construção de uma agenda de política internacional no embate presidencial nas eleições de 2022. Acredito que alguns temas serão amplamente debatidos pelos candidatos.
- As implicações da pandemia de covid-19 no Brasil.
- A perda de credibilidade e o não-lugar do Brasil na agenda ambiental internacional.
- A inação brasileira em relação às queimadas na Amazônia e as suas consequências negativas na comunidade internacional.
- As sucessivas prisões de parlamentares e jornalistas pelo STF e a relação hostil do presidente com os órgãos tradicionais de imprensa.
- O colapso dos organismos multilaterais de negociação, especialmente o Mercosul, OTCA, UNASUL e os acordos com a UE.
- Os muros ideológicos construídos contra a China, o descredenciamento da parceria estratégica com os EUA de Biden e as contínuas tensões com a Argentina.
Também é sabido que a agenda do atual governo será certamente o alvo preferencial das críticas, mas nada impede que as práticas externas do PT, sobretudo as do período Lula, hoje um potencial candidato, entre na alça de mira do bolsonarismo. Um processo eleitoral, como sabemos, é uma caixa de surpresa na qual os resultados são incertos, mas certo mesmo é que teremos uma eleição marcada pela alta voltagem dos candidatos e militantes num legítimo enfrentamento entre direita e esquerda que pode ganhar o mundo. Os temas internacionais serão certamente tratados pelos candidatos e o eleitor terá a oportunidade de avaliar e decidir nas urnas.*é cientista político e professor de política internacional do Diplô Manaus (curso preparatório para o Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata, CACD). Email: [email protected]