Breno Rodrigo de Messias Leite*
O cientista político Sérgio Abranches, em seu artigo seminal “Presidencialismo de Coalizão: o dilema institucional brasileiro”, publicado em 1988 – no bojo da Assembleia Nacional Constituinte e da promulgação da Carta Magna no mesmo ano – lança a mais duradoura e profunda interpretação sobre o regime democrático brasileiro.
A tese de Sérgio Abranches é clara e precisa: o sistema político brasileiro é uma combinação de sistema eleitoral de representação proporcional com lista aberta, multipartidarismo fragmentado e presidencialismo impositivo com características imperiais. Além do mais, acrescenta o autor, o arranjo institucional é traduzido em termos de coalizões pluripartidárias e inter-regionais no âmbito do federalismo. Pela sua força explicativa, a tese de Sérgio Abranches tornou-se quase um consenso na comunidade dos cientistas políticos.
Todavia, nas últimas décadas, o propalado presidencialismo de coalizão foi colocado à prova incontáveis vezes. Crises de governabilidade, conflitos entre Executivo e Legislativo, prerrogativas sobre a indicação ministerial, corrupção governamental, competição pelo controle de alocação orçamentária, etc. O gerenciamento do presidencialismo de coalizão já experimentou todos os cálculos possíveis e sobreviveu ao longo do tempo.
Dos presidentes da República que saíram vitoriosos nas urnas, Fernando Henrique Cardoso (1994-2002) e Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) são indiscutivelmente os casos de sucesso no gerenciamento presidencial por um único motivo: respeitaram a lei de ferro do presidencialismo de coalizão brasileiro. Edificaram bases partidárias robustas, investiram na formação de coalizões minimamente vitoriosas no Congresso Nacional, distribuíram as pastas ministeriais na proporção do apoio recebido nas votações legislativas e, por fim, construíram pontes com os governadores e os prefeitos das principais cidades e capitais. De algum modo, FHC e Lula governaram com realismo e ajustam as necessidades de seus governos aos limites institucionais do país.
Em sentido oposto, os presidentes Fernando Collor, Dilma Rousseff e Jair Bolsonaro gerenciaram mal as ferramentas institucionais do presidencialismo de coalizão. Para além das características psicológicas de cada governante, suas administrações decidiram governar com mais autonomia e deixaram de lado as possíveis alianças, os acordos previsíveis e os interesses advindos do outro lado da Praça dos Três Poderes. Governar sem dialogar ou deixar de negociar com os parlamentares é um suicídio político resultante de uma imaturidade cognitiva sobre a ponderação do parlamento na manutenção do poder presidencial.
Em resumo, pode-se dizer que Collor desprezou o receituário, Dilma decidiu abandoná-lo no meio do caminho, e Bolsonaro tentou subvertê-lo e convertê-lo à sua imagem e semelhança. Não é de hoje que “errare humanum est, perseverare autem diabolicum.”
Mas, um fato precisa ser analisado com a devida atenção. Ao longo de todas essas décadas de experiência com a redemocratização sob a égide da Constituição de 1988, marcados pelos conflitos mais insustentáveis até pela coabitação mais pacífica entre Executivo e Legislativo, o único poder que verdadeiramente cresceu foi o Judiciário. Se o parlamento fragmentou-se e fracionalizou-se numa infindável quantidade de organizações partidárias, ou o presidente da República perdeu o ímpeto estratégico, o seu poder de agenda e de veto, o Poder Judiciário, por sua vez, expandiu-se substantivamente.
A natureza da expansão do Poder Judiciário não passa necessariamente pela centralização decisória no Superior Tribunal Federal – de fato, um fenômeno relativamente recente –, mas, sim, pela sua capacidade de controlar a produção legislativa e a agenda dos chefes do executivo (prefeitos, governadores e presidente da República). Tanto a via concentrada (a instância superior do judiciário) como a via difusa (a segunda instância) alargaram consideravelmente os seus meios de ação e as suas prerrogativas na arena política.
Ao poucos, as ações do judiciário (sem esquecer o poder discricionário e abrangente do Ministério Público) foram pautando e controlando as ações dos demais poderes, dando ritmo à dança do governo com a oposição, da esquerda com a direita, dos palácios com o povo. É no cenário de impasse entre governo e oposição que se faz uso do ativismo judicial. Ou seja, quando um dos lados perde uma jogada na arena política (sobretudo na arena legislativa), logo se vê no direito de judicializar a sua derrota na arena judiciária. É na litigância do impasse político que se fortalece a judicialização da política ou politização do judiciário em todos os níveis.
A combinação de presidencialismo de coalizão com judicialização da política representa não só uma sobrecarga no processo decisório como um todo como também compromete a qualidade do regime democrático. A previsão constitucional de um sistema de separação de poderes tem a sua razão de ser. A ordem constitucional não foi erigida para coagir adversários ou instrumentalizar um regime exceção. Assim, o que se deseja de ordem constitucional é a sua funcionalidade minimamente necessária para fazer com que o país tenha uma governabilidade estável e os meios necessários para a aprovação de reformas estruturais que melhorem a vida da população.
A relação carnal que caracteriza a aliança entre o presidente da República e os ministros do STF para manobrar o Poder Legislativo pode até ter lá a sua astúcia, mas em nada acrescenta em termos de inovação institucional. A inteligência do sistema de separação de poderes serve justamente para equilibrar as ambições e os interesses, assim como garantir o controle mútuo dos poderes em diferentes arenas decisórias. Retomar o presidencialismo de coalizão com suas bases partidárias – distante dos tribunais, legítimos órgãos de controle da constitucionalidade das leis – é de fundamental importância para a legitimidade e legalidade do sistema político do país.
É do autor de “O Espírito das Leis”, barão de Montesquieu, teórico político e magistral constitucionalista, a advertência sobre os riscos à liberdade pública causados por regime de concentração de poderes: “Tudo estaria perdido se o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as divergências dos indivíduos”.
*é cientista político