23 de novembro de 2024

Prototipagem: aspectos jurídicos

Ao longo de todo o processo de inovação tecnologia uma dimensão fundamental quase sempre é deixada de lado ou tratada de forma superficial: a jurídica. De forma geral, há aspectos pré-operacionais, que precisam ser considerados na fase de elaboração da proposta ou carta de demonstração de interesse, outros que necessariamente têm que ser conhecidos e seguidos durante a fase de acordo ou aceite da proposta e alguns surgem durante a etapa de desenvolvimento e muitos outros, durante o momento da entrega, que pode ser feita de forma incremental ou completa. Ainda que alguém possa argumentar, com razão, que os aspectos jurídicos não devem ser preocupação dos membros da equipe de inovação, o fato é que determinados aspectos precisam ser tomados, no mínimo, como precaução, para que não haja conflitos ao longo da prototipagem e muito menos judicialização depois que a tecnologia estiver pronta para ganhar as arenas do mercado ou ser entregue aos seus clientes. Vejamos, portanto, alguns aspectos centrais dessa dimensão, para que o processo de geração tecnológica se faça sem muitos contratempos.
O primeiro aspecto diz respeito à gestão do projeto. Ela precisa estar revestida de todos os fundamentos e garantias legais, a começar pelo contrato de trabalho ou de prestação de serviços, para que se evitem questões trabalhistas. No caso das instituições públicas, é preciso considerar os questionamentos muito comuns de procuradorias, ouvidorias e toda sorte de fiscalização do trabalho do servidor público, principalmente acerca da quantidade de tempo de trabalho dedicado ao projeto e ao tempo para a realização das atividades do cargo. O pessoal dessa área tem dificuldade de entender que, muitas e muitas vezes, um cientista é capaz de lidar com dezenas de projetos porque na maioria das vezes seu papel é de consultoria (vai ser consultado acerca de alguma coisa) e não de operação contínua. Na gestão do projeto deve-se considerar o tratamento jurídico dos stakeholders, riscos, pessoas, saúde e segurança do trabalho. Se o projeto envolve instituições e pesquisadores internacionais, a sustentação jurídica deve dar conta dos contratos, relações e acordos internacionais, segurança de dados, aspectos trabalhistas em projetos globais e propriedade da tecnologia e dos direitos autorais.
O segundo aspecto diz respeito ao direito de propriedade. O direito de propriedade garante ao indivíduo o uso, o gozo e a disposição de um bem. Note que esse alguém pode ou não ser o cientista, grupo de pesquisas, organização científica ou financiadores do projeto. Por essa razão é necessário que os procedimentos de fundamentação jurídica sejam conhecidos e aplicados. Isso não descarta, contudo, o chamado direito de propriedade intelectual, que são os requisitos que protegem a autoria e a criação de obras de natureza intelectual, de forma que o autor possa usufruir desse direito, inclusive e principalmente se tiver a intenção de lucro. O direito de propriedade intelectual geralmente é dividido em propriedade industrial e direitos autorais.
O terceiro aspecto é a natureza da propriedade. A propriedade industrial é a reserva legal ao criador do usufruto da exploração de sua criação ou invenção, como tecnologias, marcas, design, bens e produtos. Há um período determinado por lei para esse usufruto, assim como a forma de obtenção e outras exigências legais para tal. Os direitos autorais, por sua vez, são um conjunto de leis que dão direitos a quem cria uma obra intelectual. Novamente, aqui, é sempre relevante assinalar que esses direitos são temporários, mas exclusivos, de maneira a proteger o autor dos usos indevidos e não autorizados de sua criação por outras pessoas e organizações. Tanto a propriedade intelectual como os direitos autorais têm exigências legais para registro, duração, violação, limitação, transferência, uso autorizado e outros aspectos essenciais de usufruto.
O quarto aspecto é o conhecimento sólido sobre originalidade, novidade e plágio. A lei estabelece que uma invenção tem originalidade quando não tem outra igual (unicidade), é verdadeira, genuína e que não se pode contestá-la (autenticidade) e não ser uma cópia de outra (ineditismo). A novidade, por sua vez, é tida juridicamente como não ter sido anunciada, informada, divulgada ou explorada antes de seu pedido de patente ter sido feito. Isso quer dizer que a novidade de uma tecnologia não está abrangida pelo “estado da técnica”, que é tudo o que o mercado e os órgãos de registro conhecem. Finalmente, mas não menos importante, o plágio é uma cópia, parcial ou integral, de um texto ou de uma invenção. É preciso que os pesquisadores atentem para isso, porque todas têm implicações jurídicas essenciais, principalmente porque o Direito já age desde a fase do desenvolvimento da inovação.
O quinto aspecto envolve o desenvolvimento de software. Os softwares proprietários são aqueles de propriedade privada, com restrições legais de seu criador ou editor: o código-fonte não está disponível ao público, diferentemente dos softwares livres, que permitem praticamente todos os tipos de usos e modificações. Mas atenção: mesmo os softwares livres, para que sejam assim considerados, precisam dar conta de uma série de exigências legais, tanto para resguardar os direitos dos criadores quanto para disciplinar o seu uso. A liberdade, portanto, é restrita ao que a lei permite, especificamente prescritas nas chamadas licenças open-source. Duas formas podem ser aplicadas: o resguardo do direito exclusivo do autor para modificar e usar sua obra (copyright) ou liberdade de uso, desde que essa liberdade seja estendida para os usuários de suas obras modificadas (copyleft).
A vida humana em sociedade é o sucedâneo de uma série de regras legais e morais que precisam ser obedecidas para que as pessoas possam ser livres. Diferentemente do que muitos imaginam, a liberdade exige a obediência às leis porque, ao obedecê-las, dificilmente alguém poderá ser impedido de agir. As leis existem, portanto, para ampliar o leque de possibilidades da ação humana de forma segura, jamais para controlar o ser humano que, por sua própria natureza, é incontrolável. O conhecimento das leis que regem as inovações são fundamentais para que os cientistas possam agir mais, melhor e com segurança.

Daniel Nascimento

É Professor e Pesquisador do Instituto Federal do Amazonas (IFAM)

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