22 de novembro de 2024

Reconstrução (04)

Bosco Jackmonth*

Posto nos artigos antecedentes o resumo e análise da obra “Mundo Mundo Vasto Mundo”, cabe em seguida discorrer sobre passagens outras, conquanto quem sabe algumas já abordadas a exemplo provavelmente do conto dizendo do Pio Ofício ou a Estranha Velha que Enforcava Cachorros, ond

e expõe seguidas e precisas referências à ditadura militar, aliás assunto já enfocado. Logo, os dissabores do personagem se amoldam na forma mais cabível de descrever o pesadelo político que se vivia então. 

Assim, quando se depara com a imagem de São Sebastião crivada de flechas, o personagem exclama: Os homens não são mais caçados com flechas agora são apenas cassados. Não se morre mais de hemorragia interna, morre-se de fome. Estamos em outra época. Os inocentes já não são amarrados a troncos, os tempos são outros, mais civilizados, os inocentes sentam-se agora em bancos de réu de tribunais fardados. Diz então o autor que o personagem tem como pesadelo o exibir de suas raízes políticas. Assim, aquelas passagens de cassação de direitos políticos, de injustiça social e de lutas por ideais, rapidamente se resume em uma angústia confusa e aterradora. 

Nisso, o conto “preto e branco” também é um típico pesadelo. É que nele o personagem chega a acordar e observar a realidade aparentemente diversa do seu sonho. Narrado como um filme em preto e branco, então sem cores, portanto sem alegria, sem vida, o conto mistura as duas faces da existência, ou seja real e imaginária, envolvidas pela náusea diante do cotidiano monótono e opressor ao mesmo tempo.

Dá-se que embora em quase todos os relatos desse livro aqui estampado haja evidente crítica social, dois exemplos se destacam por trazerem para o centro da cena a problemática social, que vem a ser “Vó Hermengarda” e  ”Rosa de carne”, onde o primeiro trata de um paciente que se vê explorado pelo sistema de saúde, já que estando num consultório simplório ele recorda os tratamentos populares que Vó Hermengarda distribuía com bondade e amor a todos, contrastando-se essa medicina popular e fraterna com o comércio médico dos tempos contemporâneos, eis que desumanizado e irracional.

A propósito “Rosa de Carne” teve múltiplas vidas, posto que participou de algumas antologias parecendo grudar-se à memória de seus leitores. É simples o enredo: um pai, pobre mas honrado, apura que o filho anda cometendo pequenos furtos e, como castigo, esquenta uma moeda e ferra-lhe a mão, criando ali uma rosa de carne, signo de seu crime, mostrando-se então a estrutura moral rígida do pai, e dada a condição de indigência familiar, em que a mãe põe-se amantíssima, tudo enfim criando um quadro trágico, com emoções supremas. 

Ocorre, se o indivíduo parece submetido a um pesadelo psicológico e político, se a formação moral se torna uma condenação trágica, os seres acabam destituídos da capacidade de se comunicarem. Destarte nascem os contos “Assunto perdido”, “Madalena” e “Flor de cacto”, sendo que no primeiro, amigos se encontram num bar e não conseguem sequer começar um diálogo. No segundo, o que parecia amor e compreensão de uma mulher feia e mal amada se revela fraudulenta armadilha. No terceiro, nem mesmo a dedicação integral da mulher logra arrancar as palavras do companheiro, embora aqui se descortine uma minúscula esperança: a flor entre os inúmeros espinhos do cacto. A rigor, a nota dolorosa no coração de Alexandre, o personagem central, tem raízes na infância. Diz ele, repetindo-se: Milu, você não imagina o que é alguém não se ter saciado de infância. No entanto, a esperança do personagem, talvez o único sinal de crença nesse livro niilista, esteja no tom meio irônico e indiferente do redator.      

Sucede, o grupo de contos que descrevem as pequenas misérias, as vaidades pueris, os vícios provincianos constitui um bloco de grande valor documental. Neles, a veia cômica do escritor alarga-se em volumosa corrente. A simples anedota de ambientes burocráticos, como em “Antes da nomenclatura” converte-se no exame minucioso da presunção e da mentalidade do funcionário público. Em “Figa, pé de pato, bangalô três vezes”… o desenho rápido da evangélica no comércio bíblico se torna hilariante, convertendo-nos à náusea do narrador que se tentava livrar daqueles olhos religiosos que “estavam untados de uma espécie de vaselina mística”.                              

O ponto alto, nesse campo, é o conto final. “A homenagem”. Na esteira do melhor Gogol, as caricaturas num instante se convertem em poderosos símbolos de nossa mesquinharia política, social e, fundamentalmente, humana. O personagem Conegundes e sua amantíssima inimiga, a enxundiosa esposa, estão definitivamente entre o que de melhor se criou nessa arte, aparentemente fácil, mas dificílima da caricatura expressiva. (Conclusão).

É advogado, há 57 anos (OAB/AM 436). Ex.func.Bco.Brasil Manaus e Rio, comis.p/BC  como/Fiscal de Bancos p/atuar junto as ags.voltadas p/operações Zona Franca,  Cursou Direito, Com. Social (Jornalismo), Cor. Imóveis, Oratória, Taquigrafia, Inglês, Lecionou História Geral. [email protected]. 

Bosco Jackmonth

* É advogado de empresas (OAB/AM 436). Contato: [email protected]

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