Na retrospectiva da História da Humanidade há muitos exemplos de malefícios causados pela mistura dos interesses de igrejas – e outras instituições religiosas – com os interesses dos detentores do poder temporal. Por muito tempo, bispos foram designados por reis, com anuência do Papa, gerando uma subordinação da prática religiosa aos monarcas. A própria Inquisição, um instrumento criado para “preservar” a fé católica, foi usada não apenas para perseguir os chamados “hereges”, mas também para auxiliar certos monarcas a eliminar adversários, colocando-lhes a pecha de judeus disfarçados. Um dos exemplos disso foi a prisão de vários aliados do Rei Dom João IV, após a restauração da monarquia e da soberania portuguesa, a partir de 1640, com a separação da Espanha. A perseguição à aliados do rei, sob a acusação de praticarem em segredo ritos da religião judaica ou de protegerem os que o faziam. Na realidade, os soberanos espanhóis utilizaram a Inquisição em Portugal para tentar minar o poder de um rei legítimo que era apoiado pela absoluta maioria da população lusitana,
Este é somente um dos inúmeros exemplos negativos da mistura entre poder político e poder religioso. Nas correntes protestantes, o processo de vinculação da Igreja Católica ao poder mundano foi criticado e repudiado. Com razão apontavam graves prejuízos à fé cristã, em desfavor da justiça, da misericórdia e do amor ao próximo pregados por Jesus no Evangelho. Ocorre que ultimamente o fenômeno desta simbiose nefasta migrou para algumas igrejas neopentecostais. Na Igreja Católica, o primado da fé acima das ideologias tem sido um fundamento marcante da atuação pastoral do Papa Francisco. Mas em algumas outras entidades denominadas cristãs tem ocorrido o inverso.
Entendo que os líderes religiosos também são líderes sociais. Mas não devem se utilizar de suas posições preponderantes nas igrejas para instrumentalizar eleitoralmente a fé dos fiéis. Vivemos num regime constitucional de Estado Laico, com nítida separação entre poder político e poder religioso. Um não deve se imiscuir no outro, como ocorria no passado. Ou seja, padres e pastores não podem estar subordinados a lideranças políticas. E os líderes políticos não possuem legitimidade para exercer liderança religiosa. Lembre-se das palavras do próprio Cristo: “À César o que é de César. À Deus o que é de Deus.”
É claro que padres e pastores podem orientar os fiéis a valorizarem políticos de conduta coadunada com princípios e valores cristãos. Destaco especialmente a honestidade de propósitos, o senso de justiça e o amor ao próximo. No entanto, isso não lhes dá o direito de invocar o “princípio da obediência” para determinar em quem se deve votar. Pior ainda, utilizar o culto à Deus, nas igrejas, para influenciar – ou até mesmo ordenar- o apoio eleitoral a seus candidatos prediletos. Quando muito, líderes religiosos devem se restringir à atuação política fora de suas igrejas, como cidadãos e não como clérigos.
Além da corrupção associada à mistura de política com a religião, há o risco agravante do fanatismo se sobrepor, como ocorre infelizmente em diversos lugares do mundo, principalmente onde as correntes extremistas se assenhoraram do poder político e impedem manifestações contrárias aos seus “interesses”. Aliás, em alguns países religiões não oficiais são simplesmente proibidas e seus praticantes perseguidos, presos e muitas vezes cruelmente torturados e/ou assassinados. E tudo isto em nome de uma “divindade”.
Esta não é uma discussão fácil. Mas penso que nós cristãos, independentemente da Igreja a qual estamos vinculados, devemos ter a coragem de enfrentar este debate. Algo muito precioso se encontra sob séria ameaça: a liberdade e a dignidade, que o próprio Deus nos concedeu.