*Carmen Novoa Silva
Em breve memória, relatei ano passado para uma reportagem televisiva as festas de São Pedro em Manaus, principalmente a tradicional procissão fluvial. O dia 29 de junho era feriado e dia santo para os cristãos – católicos. Afinal ele foi o primeiro papa da história designado pelo próprio Cristo. (“Tu és pedra e sobre esta pedra edificarei a minha igreja”). Em Manaus, era sempre um dia de calor intenso, de céu azul sem nuvens e de um sol impiedoso. Mas as águas lustrais dos igarapés do centro da cidade e da orla do Rio Negro passavam a sensação de frescor em conjunto com a vegetação rasteira de suas margens. As hoje lendárias árvores frutíferas e ornamentais povoavam quintais, e a frente de quase todas as casas colaboravam como escudos contra os raios solares do verão tropical. Manaus ainda era simples. Em seu traje de chita de 200 mil habitantes. Inimaginável a roupagem megalomaníaca e rutilante do hoje que a tudo transforma. Observa-se “A civilização do espetáculo” parafraseando o título do ensaio do prêmio Nobel de Literatura Mario Vargas Llosa. Ele afirma que a alta cultura não necessita de excessos como de grandes cifras de milhões (de reais) para ser sucesso. O dinheiro perdulário rouba-lhe a essência. A raiz. Essa que trouxe o alimento para que a árvore cultural se tornasse frondosa. Não é o caso de nossa festa petrina. Ela persiste em sua grandiosidade há 62 anos. Na originalidade da procissão fluvial, na qual uma tela a óleo com a imagem de São Pedro (pintado pelo artista plástico Branco e Silva em 1956) é colocada no principal barco, às vezes corveta da Marinha do Brasil e rumam com centenas de outros barcos-engalana-dos com bandeirolas, incessantes espocar de fogos de artifício-da Igreja Matriz até a outra margem do Rio Negro, na Igreja de N.S. do Perpétuo Socorro bairro de Educandos. Atualmente o roteiro modificou-se. Missa na Igreja de N. S. do Perpétuo Socorro logo após a procissão fluvial vinda do porto das catraias. Nos anos cinquenta e sessenta, quase todas as 200 mil almas da cidade iam ao “Roadway”. Uns para acompanhá-la, outros para vê-la – passar. Às vezes em ato periculoso, fiéis afoitos iam em canoas, estas acercavam-se das maiores lanchas e o banzeiro que faziam por vezes afundavam-nas acarretando até perigo de morte. No entanto a Capitania dos Portos pouco a pouco foi direcionando tudo com normas técnicas específicas a fim de evitar fatalidades. Em 1964, dia 29 de junho deixou de ser feriado nacional. A ditadura instaurada a 31 de março retirou vários dias santos do calendário deixando apenas os que julgavam mais necessários como a festa Padroeira do Amazonas Imaculada Conceição, Natal, Ano Novo, Finados e os feriados do Dia da Pátria, Tiradentes, Dia do Trabalhador, Proclamação da República e as festas móveis como o Carnaval e Corpus Christi e Sexta-Feira Santa. Durante essas seis décadas de festas de Pedro somente uma vez não ocorreu no dia 29. Foi quando o Papa João Paulo II veio a Manaus em 1980. Ela foi adiada para o dia 7 de julho, afim de que participasse. E o papa constitui-se no sucessor de S. Pedro na Terra. O pontífice. Que etimologicamente significa ponte e no caso teológico, o que une a terra ao eterno. Diziam à época (1980) que Nostradamus havia “profetizado” que um papa sofreria atentado mortal em terra onde “dois rios se encontram”. E a aura supersticiosa lembrava o Amazonas ser o berço do Rio Solimões e Rio Negro a se abraçarem secularmente. Em 1980, João Paulo II viu acompanharem a procissão 3 (três) mil barcos segundo os jornais de meu acervo e escoltado por corvetas (cinco) da Marinha de Guerra. A festa continua até na atualidade pela fé, por que o amazonense abraça a vocação da pesca. É a índole natural dos rios como estradas amazônicas. São Pedro era um pescador. Os pescadores da terra pedem sua intercessão para melhorar condições de vida, agradecem pelas ajudas temporais e espirituais. A cultura festiva -religiosa para ser autêntica não deve ser banalizada e frivolizada pela civilização megalomaníaca do espetáculo. “Suas raízes conhecem o extrato seivoso da linguagem das sirenes e apitos daquele dia celebrativo. Como sinfonia de pássaros saudando o nascer do sol. E assim como os pássaros nunca esquecerão o próprio canto.
CARMEN NOVOA SILVA, é Teóloga e membro da Academia Amazonense
de Letras e da Academia Marial do Santuário de Aparecida-SP