Nos últimos cem anos, a legitimação dos regimes democráticos precisa do aval das urnas. A edificação do Estado moderno consolidou, num primeiro momento, as instituições liberais — o sistema de tripartição de poderes em Executivo, Legislativo e Judiciário —; e, num segundo momento, houve o processo incremental de conversão de cidadãos em eleitores — a evolução dos direitos civis para os direitos políticos ampliados. A participação e a inclusão de homens e mulheres nos processos eleitorais transformaram radical e definitivamente a forma como entendemos a vida democrática.
A validação de fórmulas eleitorais passou a ser um critério político-jurídico capaz de filtrar a quantidade de votos e transformá-la preferências eleitorais materializadas em assentos parlamentares e chefes de governo em diferentes níveis; direcionar as estratégias dos partidos políticos; e, portanto, possibilitar que lideranças eleitas sejam capazes de formar coalizões minimamente vitoriosas em governos estáveis.
Ao lançar o conceito de “pedra de papel”, o cientista político Adam Przeworski refere-se a uma metáfora utilizada para descrever a estabilidade e a legitimidade das democracias eleitorais. A ideia básica, portanto, é que, assim como no jogo “pedra, papel e tesoura”, em que cada elemento pode vencer ou ser vencido por outro competidor, os regimes democráticos se sustentam em um equilíbrio delicado de forças em competição pelo poder por meio das urnas.
Adam Przeworski argumenta ainda que a estabilidade do regime democrático depende fundamentalmente de uma aceitação generalizada das regras do jogo por parte dos atores políticos. Se nesse caso as instituições são vistas como legítimas e justas, então os atores estão mais propensos a aceitar os resultados eleitorais e a respeitar as regras, mesmo quando saem perdendo. Este equilíbrio é incerto porque a legitimidade pode ser contestada a qualquer momento e as regras podem ser vistas como injustas ou manipuladas por elites predatórias. Em última análise, a construção metafórica “pedra de papel” ilustra a interdependência dos atores do regime político e das instituições democráticas, enfatizando que sua estabilidade depende da contínua aceitação da regras estabelecidas pela ordem constitucional estabelecida.
Em tempos recentes, aqui e alhures, é possível observar uma crescente contestação da tecnicidade dos procedimentos eleitorais até mesmo em países de longa tradição democrática. A segurança eleitoral tem sido colocada em xeque não só pelos eleitores, mas também por lideranças políticas eleitas ou derrotadas nos pleitos.
É preciso entender que a segurança eleitoral é um componente essencial para a manutenção da democracia e da confiança pública nos processos eleitorais. A segurança eleitoral abarca um conjunto de medidas e práticas legais e tecnológicas destinadas a proteger a integridade dos processos eleitorais como um todo, assegurando que cada voto seja contado de maneira precisa e transparente; e que os resultados reflitam verdadeiramente a vontade dos eleitores.
É possível que neste e nos próximos anos, no Brasil e no mundo, os principais desafios da securitização dos processos eleitorais sejam:
- Suspeita de fraude no sistema de votação envolvendo atividades como votação múltipla, votos de eleitores não registrados e manipulação material e estatística dos resultados. A implementação de tecnologias avançadas, como sistemas de identificação biométrica, visual e registros eletrônicos de eleitores pode, em parte, reduzir os riscos de fraude. Sistemas de votação eletrônica que são auditáveis e verificáveis são fundamentais para garantir a integridade dos sistemas de votação;
- Cibersegurança deve funcionar como um eficiente mecanismo de proteção contra ataques cibernéticos de atores domésticos ou externos. Hackers podem tentar invadir sistemas de votação eletrônica, roubar dados pessoais de eleitores, disseminar desinformação ou manipular resultados dos pleitos. A cibersegurança avançada é hoje um alicerce fundamental na defesa, segurança e soberania do país;
- Desinformação e fake news (a propagação de informações falsas) podem comprometer e influenciar indevidamente a opinião pública e os resultados eleitorais. Na era da informação, em que cada cidadão pode ser consumidor e produtor de informações, as campanhas tornaram-se simultaneamente mais abertas ao fluxo de informações e de desinformação. Programas de educação cívica que informam os eleitores sobre a importância do voto consciente e como proteger seus direitos eleitorais ajudam a fortalecer a democracia. A conscientização sobre os riscos da desinformação e como identificar notícias falsas é igualmente importante;
- Coerção de eleitores também são problemas graves em qualquer regime democrático. É essencial garantir que os eleitores possam exercer seu direito de voto sem medo de represálias. Isso inclui a presença de observadores eleitorais e a adoção de mecanismos de segurança em locais de votação. Legislação sobre crimes eleitorais, juntamente com a aplicação efetiva dessas leis, são essenciais. Além disso, políticas que promovem a transparência e a responsabilidade dos órgãos eleitorais e dos partidos políticos são vitais.
A securitização dos procedimentos eleitorais é um pilar fundamental do regime democrático. Garantir eleições seguras e justas requer um esforço contínuo e coordenado entre governos, organizações internacionais e a sociedade civil. Ao promover medidas robustas de segurança das urnas, promover a transparência e educar os eleitores, é possível, sim, proteger a integridade dos processos eleitorais e fortalecer a confiança pública na democracia.
*é cientista político