Naquela noite, quando o professor Caraíba chegou a sua casa, depois de um dia inteirinho de trabalho escolar, ele ouviu uma voz que dizia: “Não ajunteis tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem tudo consomem, e onde os ladrões minam e roubam”.
Ao sentir a mão suada, ele tentou identificar de onde vinha àquela voz, se vinha do quarto, do banheiro ou da cozinha, mas foi em vão. Não conseguindo identificá-la, ele ficou ali, na espreita, com os sentidos ligados. Foi quando à voz voltou.
“Ajuntai tesouros no céu, onde nem a traça nem a ferrugem consomem, e onde os ladrões não minam nem roubam”, fez-se ouvir. “Certamente essa passagem bíblica (Mt 6:19,20) não serve para mim. Eu sou apenas um professor que trabalha 12 horas por dia, em três escolas diferentes, para conseguir pagar as contas no final do mês”, respondeu.
“Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma ajudadora idônea para ele”, voltou a falar aquela voz e com mais força ainda. O professor Caraíba sentiu o coração acelerar e caiu sentado no sofá, refletindo sobre o que acabara de ouvir. Em questão de minutos ele passou sua vida a limpo, que não era longa, mas triste.
Estava beirando aos 50 anos e três casamentos malsucedidos. A parte positiva daqueles casamentos foram os filhos que tivera, mas que há anos não os via porque eles decidiram morar com as mães no exterior, um em Portugal, um no Canadá e a caçula no Japão. “O que é um pai sem os filhos?”, refletia.
Aquela voz tentou levantar o ânimo do professor Caraíba, dizendo: “Você precisa sair um pouco, ver gente, si divertir”. “Não me venha com essa história! Diversão era comigo mesmo”. “Eu não estou falando do passado e sim do presente”. “Os meus casamentos não deram certo por causa da minha mania de querer curtir a vida”.
A voz ficou ainda mais nítida, parecendo ser real: “Será que você não está confundido as coisas?”. “Quem, eu?”. “Sim, você mesmo!”. “Claro que não! Tudo o que eu faço é para honrar com os meus compromissos”, respondeu o professor Caraíba como se visse alguém.
“Eu sei disso! Eu sei que você é uma pessoa responsável, cumpridora dos seus deveres, um ótimo professor”. “Eu sou tudo isso mesmo!”, respondeu o professor Caraíba já mais calmo. “Mais eu sei também que você é um péssimo pai”, insistiu a voz. “Como eu sou um péssimo pai se todo mês eu pago a pensão, nunca atrasei um dia?”.
Novamente àquela voz ficou ainda mais nítida e alta. “E você acha que ser um bom pai é só pagar a pensão?”. “Eu sei que não, mas eu cumpro com o que foi determinado pela justiça”. “Falar o quê de você?”. “O que você quiser!”. “Você precisa ser mais humilde, parece que tem um rei na barriga”.
Caraíba, cismado, voltou a perguntar: “Afinal, quem é você?”. “Você esqueceu que eu sou você?”. “O quê?”. “Isso mesmo que você ouviu: eu sou você”. “Como assim, você é eu?”. “Mas será o Benedito?”, resmungou. “Ah, entendi, você é o Benedito!”, respondeu Caraíba. “Você não toma jeito mesmo!”, concluiu aquela voz ou teria sido o professor Caraíba?