29 de setembro de 2024

Soberania digital e big techs no Brasil

O apagão digital ocorrido em 19 de julho, provocado por uma falha na atualização do sensor de segurança da CrowdStrike e que gerou “tela azul” em cerca de 8,5 milhões de dispositivos que utilizavam sistemas operacionais da Microsoft, acende um alerta aos Estados nacionais – e ao Brasil em particular – sobre o risco da dependência tecnológica em áreas de interesse estratégico nacional, atualmente sob controle de empresas privadas transnacionais.

Considerada a maior interrupção cibernética da história, o evento afetou milhares de empresas e pessoas em vários países ao redor do mundo, prejudicando aeroportos, sistemas bancários e serviços de saúde, dentre outros. Trata-se de setores críticos, essenciais para o funcionamento da sociedade. Aparentemente, o problema resultou de uma falha, não de um ataque proposital. De toda forma, explicita o grau de vulnerabilidade em um contexto marcado pela ampliação das ameaças cibernéticas e pela necessidade crescente de medidas de segurança na área.

Atualmente, a CrowdStrike detém cerca de 25% do mercado de segurança cibernética A Microsoft, por sua vez, detentora do sistema operacional Windows, representa mais de 70% do mercado nessa área. Além da dependência crescente em relação a empresas privadas globais, esses dados revelam também a tendência de monopólio em setores estratégicos, ligados a infraestruturas digitais e ao controle de dados informacionais.  Observa-se, nos últimos anos, o crescimento exponencial das megaempresas de tecnologia – as chamadas big techs, em grande medida baseado no aniquilamento seus competidores.

A dependência cada vez maior de tecnologias críticas e a necessidade de segurança em sistemas informacionais constituem desafios enormes aos Estados nacionais e a suas sociedades. O fato é que o desenvolvimento exponencial dessas tecnologias nas últimas décadas e a conveniência concedida por seus aplicativos têm gerado necessidades e impactos cada vez maiores sobre a privacidade e a segurança de indivíduos e empresas. Entre a comodidade e a segurança, temos inadvertidamente optado pela primeira. Nesse sentido, além de inseguros, nos tornamos cada vez mais dependentes dessas tecnologias.

Diante do exposto, devemos urgentemente nos perguntar se há formas de mitigar essa dependência externa e a tendência de monopólio em tecnologias estratégicas, ou se já “passamos do ponto de não retorno”. O que é possível fazer para mitigar esses riscos e ameaças?

Em relação à dependência externa, faz-se necessário abrir um debate no Brasil sobre soberania digital e grau de nacionalização de sistemas tecnológicos críticos. Por sua natureza transnacional e muitas vezes intangível, as tecnologias de informação possuem um caráter subversivo em relação aos Estados soberanos na medida em que fluxos informacionais ignoram fronteiras políticas. Entretanto, a natureza da dependência no Brasil tem se tornado cada vez mais tangível. Como exemplo, podemos citar o lançamento de cabos de fibra ótica por big techs em território nacional e com ligação a outros países na região, além da presença de antenas da Starlink fornecendo banda larga fixa por satélite em grande parte da Amazônia.

Quarenta anos atrás houve um debate nacional sobre “reserva de mercado” para a informática. A Política Nacional de Informática (PNI), aprovada pelo Congresso Nacional, em 29 de outubro de 1984, visava a estimular o desenvolvimento da indústria de informática no Brasil através do estabelecimento de uma reserva de mercado para as empresas de capital nacional, protegendo os empresários brasileiros da concorrência. A lei “caducou” no início dos anos 1990, em um contexto marcado pela revolução informacional e pela onda neoliberal daquele momento. A possibilidade de uma nova lei de nacionalização parece pouco provável, especialmente pelo grau de dependência a que chegamos e pela falta de um debate na sociedade sobre o tema. Do exposto, urge necessária uma discussão nacional sobre a viabilidade de instrumentos soberanos que garantam ao Estado e a sua população segurança cibernética, documentos que não somente pensem em como propor política públicas de cibersegurança, mas principalmente, proponham como reinserir o Brasil de forma efetiva nessa cadeia global tecnológica.

Não obstante o reduzido orçamento destinado à ciência e tecnologia no País, não podemos menosprezar soluções soberanas. O Brasil possui uma interessante massa crítica na área da tecnologia da informação, em grande parte, à serviço de conglomerados transnacionais pela falta de oportunidades no País. Há exemplos de soluções soberanas, desenvolvidas com expertise nacional e que são motivos de orgulho, como as urnas eletrônicas, o serviço de transferência monetária instantâneo (pix), o sistema de controle do espaço aéreo brasileiro, dentre outros.

Quanto à tendência à monopólio, trata-se de um desafio global, que ultrapassa a capacidade de ação das instituições nacionais, demandando novos arranjos de governança global e de regulação do tema. Nesse sentido, o Brasil, por sua característica de global play e pela defesa histórica do multilateralismo, pode e deve ter papel relevante nesse debate e a reunião do G20 em novembro pode ser o grande espaço para iniciar esse movimento estratégico para a nação.

 

Autores:

Oscar Medeiros Filho é coronel da reserva do Exército, doutor em Ciência Política pela USP e professor da Escola Superior de Defesa.

Danielle Jacon Ayres Pinto é doutora em Ciência Política pela Unicamp e Professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Redação

Jornal mais tradicional do Estado do Amazonas, em atividade desde 1904 de forma contínua.

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