A história é um porto seguro para os estudiosos da Amazônia. Da sua formação pré-colonial, passando pela conquista militar e ocupação territorial-fronteiriça pelos ibéricos e brasileiros, temos aqui – assim como na região platina, ao sul do subcontinente sul-americano – um aparente conflito entre um projeto nacional-soberano e uma proposta de ampliação dos interesses internacionais na região.
Não é meu intuito aqui neste breve ensaio revisar toda a história da região em seus meandros. Tampouco proponho-me a lançar uma tese originalíssima sobre os acontecimentos inter-regionais no contexto amazônico. Inequivocamente já há literatura histórico-sociológica suficiente sobre o assunto. Meu objetivo aqui é examinar a tensão entre os dois projetos soberania e internacionalização da Amazônia no contexto daquilo que denomino de geopolítica da Zona Franca de Manaus.
Antes de qualquer coisa, dois conceitos são importantes para entendermos bem a situação em que nos encontramos. Por definição, soberania é a capacidade que um determinado Estado tem de controlar e governar um território e um povo por meio das leis e da autoridade constituída; é a própria afirmação do Estado-nação como autoridade legítima; e com poder de decretar leis, promover a guerra e a paz, amparar um corpo constitucional, definir a moeda nacional e arrecadar tributos.
Já o processo de internacionalização ou globalização é a relativização da própria ideia de soberania. As ondas de internacionalização limitam o poder de ação dos Estados em nome da transnacionalização do capital, do cosmopolitismo e da defesa dos direitos humanos. A escalada globalizante amplificou os interesses internacionais – principalmente de potências estrangeiras, grandes corporações e organismos internacionais – em regiões inteiras do globo.
Uma coisa é certa e não podemos nos opor aos fatos: a Amazônia é uma região internacionalizada. É óbvio que esta afirmação, talvez inapropriada para o momento de exasperação das rivalidades internacionais entre várias nações, pode soar descuidada para muitos, pois, em princípio, desafiaria as verdades eternas e reconfortantes da retórica nacionalista mais comezinha. De fato, afirmar que a Amazônia está vocacionada para uma vida internacional compartilhada é, por definição, um imperativo geoeconômico e geopolítico de enorme complexidade nacional, regional e mundial.
Vamos então para os fatos propriamente. O Brasil não é a totalidade da Amazônia. Países como Colômbia, Peru, Venezuela, Equador, Bolívia, Guiana (inglesa), Guiana Francesa e Suriname (antiga colônia holandesa) compartilham conosco esta imensa região marcada pela diversidade de populações ameríndias, culturas, nacionalidades e modos de vida em ambiente tropical.
Em seu estudo clássico, “A Amazônia e a Cobiça Internacional”, escrito originalmente em 1965, nos estertores da ordem democrática, Arthur Cezar Ferreira Reis pontua com muita inteligência a questão nos seguintes termos: “Não somos hostis a qualquer plano de participação de outros povos, como nós tendo o direito de existência feliz, na ocupação da Amazônia. Ela, ademais, não é integralmente espaço físico de nossa soberania. Pertence [naquele momento] a outras cinco repúblicas sul-americanas, que se preocupam com aqueles seus mundos interiores na problemática grave que apresentam”.
Assim, continua Arthur Reis nas suas palavras conclusivas: “Que essa participação, todavia, seja conduzida por nós, de acordo com nossos desejos, sem afetar o exercício de nossa soberania, sem perturbar nossas características étnicas e culturais. A ação do poder público, ação dinâmica e veloz, portanto, é imperativo de segurança nacional”.
Soberania nacional, soberania compartilhada ou gerenciamento internacional? Este é o falso dilema sobre o futuro da Amazônia; e a ele estamos cognitivamente prisioneiros. Num mundo tão aberto, podemos ir além. Afinal, a Amazônia é brasileira e sul-americana, bem como se permite ser um espaço de investimentos internacionais.
Se pensarmos bem, os grandes momentos de auge econômico na região – da abertura do Rio Amazonas à navegação internacional, todo o ciclo da borracha no período da Belle Époque e até mesmo a implantação das bases industriais do modelo Zona Franca – foram exemplos concretos de abertura da Amazônia para a comunidade econômica internacional, especialmente para os países europeus e EUA, num primeiro momento, e para os investimentos asiáticos como acontece no momento atual.
Num rápido exercício de imaginação sociológica, pensemos como seriam as metrópoles da Amazônia sem a pujança da arquitetura europeia? Sem os projetos urbanísticos ingleses? Sem o capital dos países asiáticos (Japão, Coreia do Sul e, recentemente, a China)? Sem a tenacidade empresarial de judeus, sírios, libaneses ou indianos? Em suma: não podemos ter medo de abrir as portas da Amazônia para o mundo, para os fluxos internacionais e para os investimentos.
O argumento de constante ameaça à soberania nacional me parece fraco. É refém de uma memória nacional-desenvolvimentista dos anos 70 do século passado. Sob a propaganda de “integrar para não entregar”, a Amazônia foi reduzida a uma geopolítica militarista equivocada, pois via a região como um enorme espaço desabitado, hostil e que precisava de um choque de desenvolvimento econômico, à época, o novo eufemismo para a já conhecida ideia de progresso.
Posteriormente, sob a chancela do pacto amazônico, os países da região passaram a se preocupar muito mais com a integração regional aberta e o desenvolvimento socioambiental da região. Por se tratar de Amazônia, o desafio logístico é sem precedentes: população de 38 milhões de habitantes, 40% do território sul-americano, a maior diversidade florestal do mundo, mais de 20% da fauna e flora existente, mais de 20% de toda a água doce do planeta e, não posso deixar de falar, dos aquíferos e recursos minerais recém descobertos.
É interessante meditarmos sobre a seguinte curiosidade: a Amazônia só se torna uma prioridade para a elite política nacional quando fortemente ambicionada por atores internacionais. O modelo Zona Franca, tantas vezes reformulado e questionado quanto a sua necessidade pelos cabeças-de-planilha de todas as partes do país, pode perfeitamente ser substituído por uma radical alocação de recursos internacionais na região, principalmente em torno dos ativos e passivos ambientais como a água doce, os recursos minerais, a fauna e flora etc. Brasília gosta de controle e, por essa razão, dificilmente abriria mão da Suframa.
Assim, o funcionamento das engrenagens da geoeconomia da Zona Franca de Manaus obedece a seguinte lógica. Por um lado, possibilitam a atração de investimentos internacionais das mais diferentes partes do mundo (inicialmente seguindo o modelo de substituição de importações e atualmente de acordo com as cadeias produtivas globais de valor no contexto da indústria 4.0). Por outro, permite o gerenciamento do modelo via Suframa. Nem tanto ao céu e nem tanto ao mar, podemos entender que soberania nacional brasileira e dos demais países da região pode conviver perfeitamente com o processo de internacionalização dos negócios. A geopolítica da Zona Franca é um interessante ponto de equilíbrio entre os interesses nacionais e internacionais na região.
A Amazônia tem uma vantagem estratégica que, quando bem jogada, por mudar a posição dos atores nacionais e internacionais. Com inteligência, que possamos fazer disso um trunfo e um ganho para toda região.