16 de setembro de 2024

‘Código do Consumidor veio para ficar’, diz Rosely Fernandes

Dirigente por duas vezes do Procon-AM, a advogada consumerista Rosely Fernandes avalia que a relação entre as empresas e os clientes melhorou ao longo desses 30 anos de vigência do Código do Consumidor – uma ferramenta que só veio agregar mais ainda os canais da luta por direitos do cidadão no Brasil.

Antes, as reclamações envolviam só os produtos, mas agora elas têm como principal foco os serviços prestados que nem sempre cumprem o que determina a legislação, ressalta a advogada. Essas irregularidades envolvem os mais diversos segmentos de mercado em atividade, hoje, na economia.

Apesar do avanço nesse convívio diário com os consumidores, Rosely alerta, porém, que muita coisa precisa ainda ser aperfeiçoada, como acontece com a rede bancária. Em geral, os bancos são alvos de denúncias por taxar indevidamente correntistas, desrespeitando uma resolução do Banco Central que exige a concessão de um pacote de serviços essenciais gratuitos.

“Os bancos omitem essas informações. E cobram tarifas dos clientes que não têm a menor noção sobre o que estão pagando”, afirma a advogada. “Se um banco oferece mais crédito é para o consumidor se endividar mais. Não especifica a parte tarifária que vai incidir sobre um empréstimo”, explica. Na realidade, é uma armadilha para angariar mais lucros.

A advogada também defende que o poder público amplie a atuação dos Procons. Hoje, o órgão só existe em Manaus e em três municípios do interior. “Não tem como expandir um serviço que é um canal para a população reclamar e exigir os seus direitos”, acrescenta a advogada.

Rosely disse ter um olhar diferente sobre a relação entre os consumidores e as empresas no mercado. Para ela, essa maior interação extrapolou os limites, tendo hoje também um efetivo cunho social e econômico – são três peças essenciais para um convívio harmonioso, com muita sintonia, e mais efetividade.

“O Código do Consumidor é uma lei que pegou e veio para ficar. A partir dele, vieram outras legislações que possibilitaram a concessão de mais benefícios, como a que tira da exclusão do mercado o consumidor superendividado”, afirma.

De acordo com Rosely, o mercado virtual, uma tendência que ganha a cada dia mais espaço no Brasil, busca se adaptar às exigências do código, cumprindo à risca certas exigências, como permitir a troca de produtos por um prazo de até sete dias caso o consumidor manifeste esse desejo. Essa obrigatoriedade não existe, porém, nas lojas físicas. Algumas a adotam para atrair mais consumidores.

“A mola mestra da economia é o consumidor. Então, o código é a principal referência para as empresas serem bem-sucedidas nessa relação, oportunizando estratégias para alavancar as suas atividades em todos os segmentos”, afirma Rosely.

A advogada falou com exclusividade ao Jornal do Commercio.   

Jornal do Commercio – Quanto tempo dedicado ao Procon do Amazonas?

Rosely Fernandes –Foram 14 anos na primeira gestão do Procon e mais três, na segunda. Saí da instituição, mas continuo defendendo os consumidores.

JC – O Código de Defesa do Consumidor completa 30 anos de vigência. Observa algum avanço nessa relação ou ainda falta fazer muita coisa?

Rosely  Fernandes – O Código de Defesa do Consumidor é uma lei que pegou e veio para ficar. O nosso País tem várias legislações, mas tem aquelas que pegam e outras não. Digo sempre que temos um divisor de águas.

Antigamente, reclamava-se muito dos produtos, mas agora se reclama mais dos serviços prestados. Muita coisa melhorou, temos empresas com mais estruturas para atendimento ao consumidor.

Temos ouvidorias, os Sindeps, que são um sistema de informatização que  todos os Procons possuem e que unificam todas as reclamações. E são divulgadas anualmente, justamente no mês de setembro.

Temos a lei do superendividamento que acabou de ser sancionada este ano. Então muita coisa melhorou, mas sempre tem um porém.  Precisa ainda fazer muita reflexão.

Vejo a lei do superendividamento além de um viés jurídico. Tem também um cunho social e econômico porque tira da exclusão social do mercado aquele consumidor superendividado.

Mas precisamos ainda de um pacto regional e nacional na defesa do consumidor em que o diálogo prevaleça pra que a gente possa ter a efetividade da lei na questão do código.

JC – Há um relacionamento mais virtual com os consumidores. As lojas que vendem pela internet ampliam o seu raio de ação. Isso ficou mais evidente durante a pandemia. Como avalia essa nova tendência?

Rosely Fernandes – Já esperávamos que isso acontecesse, mas não tão cedo. A pandemia antecipou essa questão remota. O que a gente quer é transparência, um anseio dos consumidores de um modo geral, mais honestidade, diálogo, mais educação e respeito na relação de consumo.

Isso tanto do ponto de vista do consumidor quanto do fornecedor. É bom para os dois lados. As empresas virtuais estão incluídas no código e precisam se adequar às exigências, respeitando o prazo de sete dias para troca de produtos.

JC – Muitas empresas estão investindo na logística. Às vezes, marcam um dia para entrega, mas entregam um dia antes….

Rosely Fernandes – É isso que a gente quer, qualidade, o que foi acertado seja cumprido. O respeito tem via dupla – tanto o consumidor quanto a empresa devem priorizar pela qualidade na relação de compra e venda.

JC –Os consumidores estão ainda reclamando das grandes lojas de departamentos, principalmente sobre o cumprimento de sete dias para troca de produtos…Essa exigência está sendo mesmo cumprida?

Rosely Fernandes – Pois é, o prazo para desistência está no artigo 49 do Código do Consumidor. As empresas cumprem, muito embora essa exigência só vale para as compras efetuadas fora do estabelecimento comercial, que são justamente as compras pelo ambiente virtual.

Esse prazo só ocorre nas empresas físicas que adotam essa política de relacionamento com o consumidor. É uma maneira de atrair mais os clientes, dando vantagens.

A gente recebe reclamações por e-mails. Em geral, esses prazos são cumpridos. O consumidor deve investigar a loja antes de efetuar a compra, ver se tem segurança, CNPJ, consultar avaliações, se tem endereço.

Vi um caso de um consumidor que não atentou para essas informações e recebeu, no lugar do celular, uma caixa contendo pedras. Isso ficou marcado pra mim. Foi quando observei que esse novo nicho de mercado precisava ser melhor informado para o consumidor.

JC – O consumidor tem o poder de decidir, compra aqui, ali, tem uma opção…..

Rosely Fernandes – A mola mestra da economia é o consumidor, vivemos num país que está em desenvolvimento. Então, ele precisa de crédito para alavancar a economia, pra ter renda, empregos.

Vejo a relação com o consumidor não apenas como uma norma jurídica, mas também com um cunho social e econômico. A relação de consumo sempre vai estar atrelada ao consumidor que é o mais importante de tudo isso.

JC – Os serviços bancários também se destacam entre as reclamações dos clientes. O consumidor sempre é surpreendido com a cobrança de taxas. Hoje, mudou muito o mercado com a concorrência dos bancos digitais. De que forma está sendo trabalhada essa questão para se ter mais transparência nessa relação?

Rosely Fernandes – De acordo com dados deste ano do Banco Central, existem 565 milhões e 300 mil contas correntes e poupanças ativas no Brasil. Por aí pode-se mensura o tamanho desse universo do mercado  que tem como principais representantes bancos tradicionais

Mas não se tem uma regulação dos valores desses pacotes de serviços. O que se tem é uma resolução do Banco Central que dispõe sobre um pacote de serviços essenciais que são gratuitos aos consumidores.

Mas os bancos não passam essas informações com clareza para os clientes. Então, muitas vezes o cliente não sabe o que está pagando.

Os agentes financeiros precisam promover muito bem essa comunicação. Os apelos de marketing de bancos oferecem crédito, mas não informam os pacotes tarifários. Pelo contrário,  dão mais empréstimos para endividar mais.

O consumidor deve verificar bem os perfis dos bancos, ver se o que paga é devido ou não. Hoje, os clientes estão optando pelos bancos virtuais porque se paga menos pelas tarifas.

JC – Você disse que no Basil existem leis ‘que pegam e outras não’. Por que não pegou a lei da fila…. ou já melhorou?

Rosely Fernandes – Sempre tive um olhar peculiar sobre a lei da fila. Ela exige que todo um órgão esteja muito bem estruturado para ser aplicada. Como é que eu vou fazer uma fiscalização com apenas um fiscal municipal? Não tem como.

Com isso, o consumidor tem que carimbar a senha contendo o horário que foi atendido pelo caixa pra depois fazer a denúncia ao Procon.

O Procon de São Paulo é uma exceção – tem mais de 500 colaboradores. O Brasil é cheio de brasis. Posso ter um órgão de consumidor com 500 colaboradores e outro na Região Nordeste só com três.

E hoje tem município que não tem Procon porque o poder executivo municipal não quer. O que se reclama mais é sobre a falta de energia, falta de água, falta de uma agência bancária, de operadora de telefone, de internet.

Cabe aos chefes do poder executivo fortalecer esses órgãos com mais responsabilidade. Foi feita uma pesquisa pra dizer o órgão que o brasileiro confia mais hoje.  Em primeiro foi o corpo de bombeiros e, o segundo, os Procons.

Precisa de mais respeito por parte dos poderes porque essa responsabilidade está intrinsecamente ligada ao nosso bolso, do cidadão, ao que a gente gasta, é dinheiro…

JC – O Banco Central estabelece um pacote de serviços gratuitos nos bancos, mas nem sempre isso está muito claro. Qual o caminho para um consumidor, que se sente lesado, buscar essa transparência sobre o que é cobrado dele?

Rosely Fernandes – Os bancos têm os seus próprios sites, mas se você for fazer as buscas vai encontrar os valores das tarifas.

A Febraban lançou uma plataforma muito interessante onde coloca os valores e serviços de cada banco que existe em nosso País. Temos também um instituto do qual eu faço parte, que é o Idep, que também coloca os valores sobre esses serviços.

Em caso de irregularidades, precisa notificar ao Procon para que a agência seja autuada.

JC – A população tem como recorrer ao Procon na cidade, mas esse serviço é praticamente inexistente no interior. É uma dificuldade a mais para o consumidor….

Rosely Fernandes – Exatamente. Nosso Estado é muito peculiar. Essas situações não acontecem, por exemplo, entre São Paulo e Campinas, onde tudo é perto.

Moramos num Estado com peculiaridades muito fortes que são justamente as distâncias entre um município e outro. O interior está pedindo socorro na relação de consumo. Recebo e-mails de pessoas pedindo ‘por favor nos ajude’.

Já sentimos essas dificuldades em Manaus, que tem mais de 2,5 milhões de habitantes, agora imagina no interior do Estado. Quanto mais órgãos do consumidor, melhor para o cidadão.

E essa prerrogativa está na Constituição. Só existem três Procons em municípios. Não adianta a câmara criar a sua comissão no interior porque ela não vai ter o poder de polícia. O Procon não veio pra ferrar o consumidor, não veio pra multar. Veio para ajudar e dar orientações. A multa é uma atividade meio.

JC –E hoje como está a sua atuação profissional em cima de toda essa expertise que alcançou defendendo o consumidor?

Rosely Fernandes – Quando saí do Procon em 2017, algo ficou no coração e falei pra mim mesmo ‘preciso me  reinventar’. Uma corretora de um Colt me ligava todo dia para atuar.

Me venceu pelo cansaço. Aí decidi fazer Colt. Fiz também doutorado que me ajudou muito a olhar o nosso País, o mundo, com outros olhos. Pude estar em outro país e verificar a realidade, fazer comparações, estudar mais, oxigenar mais na defesa do consumidor. Onde eu possa auxiliar mais.

Auxilio empresas pra que elas atendam o Código de Defesa do Consumidor, pra que o consumidor seja um bumerangue, vai e volta. Sou chamada para falar sobre defesa do consumidor na Assembleia de São Paulo, no Congresso.

Mas o nosso Estado ainda precisa dar mais positividade e efetividade a essa matéria. Me voltei para o meu Estado e disse que é aqui mesmo que vou ficar, fincar o pé, defendendo os consumidores e as  empresas para uma melhor relação.

Então, a minha consultoria veio justamente pra auxiliar as grandes empresas na relação de consumo, evitando propagandas enganosas. E fiquei muito feliz trabalhar com tudo isso.

JC – A Amazonas Energia continua sendo uma das mais reclamadas junto ao Procon e em todos os órgãos de defesa do consumidor. A empresa não está prestando um bom serviço ou a população está sabendo reclamar um pouco mais?

Rosely Fernandes – Vejo de duas formas. É muito salutar ao cidadão reclamar mais. Se não fizer isso, não vai resguardar os seus direitos. Antes o consumidor engolia tudo goela abaixo. Agora, não. Diz ‘’empresa me respeite assim como respeito pagando as minhas contas em dia’. Claro, fazendo de uma forma equilibrada, sem agressividade.

Por outro lado, vejo que a Amazonas Energia precisa estar mais conectada com seu consumidor, o seu cliente, porque é o cliente que leva dinheiro. Deve ter pessoas que saibam lidar melhor com o atendimento ao consumidor. Colocar gente que não gosta dessa função é como dar um tiro no pé.

Foto/Destaque: Divulgação

Marcelo Peres

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