História da Justiça Estadual no Amazonas é testemunha da evolução da democracia no Estado brasileiro
Não foram poucos os homicídios que abalaram o Amazonas e mais especificamente a cidade de Manaus no início do século 20. Alguns ficaram insolúveis, outros chegaram ao Tribunal do Júri, e pelo menos dois, entre estes, sob forte pressão da opinião que pedia a condenação dos réus acusados das mortes de Ária Ramos (1915) e de Delmo Campelo Pereira (1952).
Na quarta-feira de cinzas de 1915, a cidade de Manaus amanheceu sob intensa comoção – e levou décadas e décadas para refazer. Um tiro disparado por um rapaz ciumento havia parado o coração de 18 anos e os acorde de violino de Ária Ramos quando estava solava a valsa “Subindo aos Céus” nos salões do Ideal Clube, centro da capital amazonense, em plena terça-feira de carnaval 17 de fevereiro.
“O Caso Delmo”
Trinta e sete anos depois, à noite de 5 de fevereiro de 1952, Manaus recebeu perplexa uma notícia terrível: cerca de 40 choferes de praça haviam feito justiça com as próprias mãos, matando com requintes de crueldade o estudante Delmo Campelo Pereira. Na madrugada de 31 de janeiro (fazia menos de uma semana), Delmo assassinara o chofer de praça José Honório, deixando a cidade estarrecida.
Em sua jornada noturna de trabalho, José Honório tivera o infortúnio de transportar dois passageiros à Serraria Pereira: o estudante Delmo e um marginal cuja identidade não se tornou conhecida. Delmo pretendia apoderar-se do dinheiro do caixa da empresa cujo proprietário era seu pai, Roberto Pereira, mas encontrou resistência por parte do vigia Antônio Firmino da Silva – e decidiu matá-lo, o que fez do motorista José Honório uma incômoda testemunha. Poucas horas depois, e mais de quinze quilômetros daquele local, Delmo e seu cúmplice executaram o motorista José Honório.
Embora gravemente ferido, Antônio Firmino da Silva sobreviveu e denunciou Delmo Pereira como matador de José Honório.
Acadêmicos de Direito, advogados, professores, comerciantes e funcionários públicos lotaram a galeria do Tribunal do Júri, acompanhando as sessões de julgamento que se prolongavam madrugada afora.
Dos 27 que sentaram no banco dos réus, acusados de trucidar o estudante Delmo, apenas nove foram absolvidos. Os réus conhecidos pelos apelidos de Carioca, Pirulito, Tambaqui, Puxa-Faca, Mal-de-Vida e Santo Pobre – identificados como mentores e principais executores da chacina – foram condenados a penas que variaram entre 25 e 30 anos de reclusão.
Presidiu o Tribunal do Júri o juiz Ernesto Roessing. Atuou na acusação o representante do Ministério Público, promotor Domingo Alves Pereira de Queiroz. A convite da União dos Estudantes do Amazonas, o advogado Celso Nascimento, um dos criminalistas mais conceituados do Brasil, atuou como assistente de promotoria. Foram advogados dos réus os criminalistas amazonenses Manuel José Machado Barbuda, Raimundo Nonato de Castro, Milton Augusto Assensi, Adriando Queiroz, Demosthene de Stephano, Rodolfo Martins Filho e Ligier Herculano Barroso.
Intervenção e dissolução do Palácio da Justiça
Ao longo de mais de 125 anos de sua história, dois episódios – um na década de 1930 e outro na década de 1960 – marcaram negativamente a história da Justiça Estadual no Amazonas: primeiro com a dissolução do Poder Judiciário por um interventor federal e na sequência pela ocupação do Palácio da Justiça por policiais militares por ordem do chefe do Poder Executivo.
Em junho de 1931, o Superior Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas deferiu um pedido de habeas corpus para que fosse posto em liberdade o réu (colombiano) Abdon Villareal que estava preso, por denúncia do Ministério Público, acusado de estupro. No entendimento do colegiado, não ficaram caracterizados os crimes de violência carnal e estupro definidos nos art. 267 e 269 do Código Penal da República.
A decisão causou protestos populares e desagradou o interventor federal Álvaro Maia. Este, em revide, dissolveu a mais alta Corte de Justiça do Amazonas, que decretou o Ato n 699 de 25 de junho de 1931, dissolvendo o Superior Tribunal de Justiça do Amazonas e aposentando todos os seus membros: desembargadores Hamilton Mourão (presidente), Gaspar Antonio Vieira Guimarães (vice-presidente), Antero Coelho de Rezende, Arthur Virgílio do Carmo Ribeiro e Raimundo Vidal Pessoa.
Em solenidade realizada em 30 de junho (de 1931) juízes tomaram posse novos desembargadores e, no ato de posse, o interventor federal referiu-se ao habeas corpus concedido pelo Superior Tribunal de Justiça e buscou nos princípios revolucionários de 1930 a justificativa para as arbitrariedades por ele praticadas: “Não foi irreflectido, como se figura à primeira vista, o meu acto. Tomei uma atitude talvez violenta em defesa da família. No regime passado, seria um acontecimento vulgar; hoje em dia, bradava por uma atitude de quem, acidentalmente, representa os princípios de Outubro e, em consequência,o povo amazonense”, disse o interventor.
Um mês depois do chamado do Palácio do Catete, o interventor federal Álvaro Maia fora substituído e coube ao interventor Antonio Rogério Coimbra cumprir o despacho de 31 de dezembro de 1931, do chefe do Governo Provisório da República, que mandou anular o Ato m 699; reintegrar no exercício de seus cargos os desembargadores Gaspar Antônio Vieira Guimarães, Hamilton Mourão, Raimundo Vidal Pessoa. Arthur Virgílio do Carmo Ribeiro e Antônio Coelho de Rezende e reverter aos seus antigos cargos os juízes ora nomeados para compor o Superior Tribunal de Justiça em substituição aos titulares.
Em seu discurso no ato de reintegração o desembargador Hamilton Mourão evidenciou a arbitrariedade do ato que dissolveu a Corte Estadual: “Reintegrados, em cumprimento às determinações do Governo Provisório da República, nos nossos cargos de desembargadores desse Superior Tribunal de Justiça, dos quais fomos despojados por um inconcebível golpe de força. Recebemos com essa reintegração, a reparação moral por que ansiávamos pela injusta violência de que fomos vítimas”.
Anos depois, os juízes André Vidal de Araújo, Sedoc Pereira e João Rebello Corrêa – nomeados por ato do interventor Álvaro Maia – contudo, viriam, depois a ser nomeados desembargadores da mais alta Corte de Justiça do Amazonas.
Ocupação do Palácio da Justiça
Outro episódio considerado constrangedor marcou, também, o Poder Judiciário do Amazonas, em meados da década de 1960. O constrangimento, que culminou com ocupação do Palácio da Justiça por policiais militares se deu em agosto de 1964 e durou dois longos dias. O motivo: ao exercer com independência o dever que lhe cabe de julgar com isenção e imparcialidade, o Tribunal de Justiça do Amazonas desagradou o chefe do Poder Executivo.
O Tribunal reuniu-se em sessão extraordinária às três horas da manhã do dia 11 de agosto para julgar o pedido de habeas corpus impetrado por um advogado em favor do ex-governador Plínio Ramos Coelho, preso no quartel da Polícia Militar por ordem do governador Arthur Cézar Ferreira Reis.
O processo, distribuído ao desembargador João Rebello Corrêa, não pôde ir a julgamento porque não constavam dos autos as informações da autoridade coatora. O presidente encerrou a sessão e determinou que, quando chegassem as informações do governador Arthur Reis, já solicitadas por meio de ofício, o Tribunal seria novamente convocado.
O Tribunal reuniu-se novamente em sessão extraordinária às 14h do mesmo dia, concluindo pela incompetência do governador para ordenar a prisão, que somente poderia ser determinada por autoridade judiciária ou por autoridade policial, por meio de inquérito, e concedeu o habeas corpus solicitado.
No mesmo dia – 11 de agosto de 1964 – as sessões no Tribunal não foram realizadas em virtude de encontrar-se o prédio do Palácio da Justiça com soldados da polícia militar, postados em seus portões, sem qualquer solicitação do Poder Judiciário, exigindo carteira de identidade de todos que procuravam acessar o prédio, inclusive magistrados e funcionários da Justiça, o que importa em coação ao livre funcionamento deste Poder.
O quadro agravou-se no dia 29 de dezembro de 1964. O governador Arthur Reis baixou decreto aposentando “por conveniência da administração”, o juiz de Direito Oswaldo Salignac de Souza da 7ª Vara da Capital. O juiz ‘castigado’ por ter absolvido, em processo regular, um réu que o governador queria ver condenado: o engenheiro Jaime Bittencourt de Araújo, ex-diretor do Departamento de Estradas de Rodagem da Amazônia.
Em sinal de protesto às constantes ameaças transmitidas ao Judiciário por membros do Poder Executivo, os desembargadores Leôncio de Salignac, Benjamin Magalhães Brandão, Roosevelt Pereira de Melo, Oyama Cézar Ituassú e Sebastião Salignac de Souza requerem suas aposentadorias em caráter irrevogável.
Naquele ano (1964), o então presidente do Tribunal de Justiça do Amazonas, desembargador João Machado transmite o cargo ao novo presidente eleito Mário Silvio Cordeiro de Veçosa, que havia sido eleito.
Em 5 de janeiro de 1965, para apaziguar os ânimos acirrados entre os Poderes, o general Jurandyr Bezerra Mamede chegou em Manaus trazendo instruções do presidente Castello Branco para avalizar a restauração das garantias constitucionais que haviam subtraídas ao Poder Judiciário e mediar a crise deflagrada pelo chefe do Poder Executivo.
No dia 6 de janeiro o governador Arthur Reis expressou sua determinação de assegurar todas as garantias constitucionais do Poder Judiciário.
Diante de tal quadro, o Tribunal de Justiça, reuniu-se em sessão plenária especial e proferiu a seguinte decisão: “O Tribunal, por unanimidade de votos, tendo em vista que S. Excia, o Sr. Governador do Estado em reunião com o presidente do Tribunal de Justiça na manhã de hoje, no Palácio Rio Negro, assegurou à magistratura todas as garantias e prerrogativas constitucionais, resolve cessar, a partir desta data, os efeitos da Portaria nº 366/64 de 30-12-64, sobre a suspensão das atividades da magistratura amazonense, por entender que não mais se justifica a manutenção”.