Um dos mais tradicionais segmentos industriais da Zona Franca, o polo relojoeiro já enfrenta uma longa crise, dado o avanço da concorrência dos produtos importados legalmente, assim como a amplitude dos casos de pirataria, subfaturamento e contrabando. Como resultado, o subsetor, que já chegou a contar com 25 fábricas em Manaus, passou a se equilibrar com sete, nenhuma delas de grande porte.
O faturamento e a produção, que já apontavam para uma queda de dois dígitos nos dias pré-pandemia, entraram em coma após a deflagração da crise da covid-19 no Brasil. Passado o pico da pandemia na capital amazonense, parte das fábricas de relógios e ourivesaria trabalham com 30% de sua capacidade instalada, na melhor das hipóteses. As demais, simplesmente ainda não reabriram as portas.
Diante de um panorama de ensaio de velório, e da perda de competitividade em favor dos importados, o presidente do Sindicato da Indústria Relojoeira do Amazonas, Amilton Cestari, informa que a entidade já está pleiteando, junto ao Executivo amazonense, um aumento no nível de crédito estímulo de ICMS, no mesmo nível de outros subsetores. A meta é concorrer em patamar menos desvantajoso e, talvez, trazer de volta empresas ao PIM.
Outro problema destacado pelo dirigente – e que afeta a indústria incentivada como um todo – é a insegurança jurídica do modelo ZFM, em face da Reforma Tributária e do prazo de validade terminal da lei de incentivos estadual. Na conversa com o Jornal do Commercio, Cestari, que conta com mais de 30 anos na indústria e começou sua carreira como relojoeiro reparador, fala ainda da mudança do mercado de joias e relógios e do valor agregado de uma boa marca. Leia, a seguir, a íntegra da entrevista.
Jornal do Commercio – A indústria do PIM vem se recuperando, especialmente os polos eletrônico e duas rodas. Já o polo relojoeiro apresenta dificuldades, que não são novas. O que está havendo?
Amilton Cestari – Se pegarmos os números do primeiro trimestre e compararmos com os do mesmo período do ano passado, vemos uma queda de 32% no volume de peças vendidas. Se falarmos em dólar, que teve uma valorização de 42%, a situação é pior. Estamos falando de um segmento com 50 anos, que atua na Zona Franca desde seu início, com empresas nacionais e multinacionais, com marcas de renome internacional. Muitas já nem existem mais ou não estão mais em Manaus. Já tivemos 25 empresas, mas hoje só contamos com sete, sendo quatro médias e três pequenas. Já vínhamos sofrendo quedas de produção, até pela alta do dólar e a concorrência com produtos contrabandeados e importadores em outros Estados. O mercado em si teve uma retração pela própria economia, que não estava boa para nenhum segmento.
JC – O sindicato não tem um projeto para tentar retomar esse segmento no PIM?
AC – Temos um pleito, junto ao governo do Estado para tentar trazer de volta essas empresas. Economicamente, hoje é mais viável fazer a importação do que produzir em Manaus. E o custo montagem, mão de obra, etc, é maior também no resto do Brasil. Estamos pleiteando uma elevação de nosso crédito estímulo de ICMS, para tentar concorrer com os importadores e, talvez, tentar trazer de volta essas empresas para a Zona Franca.
JC – Qual a posição da entidade a respeito dos encargos e tributos estaduais?
AC – Em nosso pleito, apresentamos um comparativo do polo relojoeiro com outros três subsetores – duas rodas, químico e eletroeletrônico – que são maiores. Quando vemos os números da Suframa e comparamos proporcionalmente, vemos que eles têm um benefício maior e recolhem menos em relação ao seu ICMS devido. Se pegar por posto de trabalho, o polo relojoeiro pagam muito mais ICMS por cada colaborador e até em relação ao faturamento. Teoricamente, somos bons contribuintes, só que isso está fazendo com que o mercado definhe. Já havia informações, embora nada oficial, de redução de quadros em algumas empresas.
Hoje, todos os segmentos do Distrito voltaram a trabalhar. No nosso, temos uma empresa que voltou a trabalhar agora, nesta semana. Outras estão com 30% de sua capacidade instalada e tem uma grande indústria que está há quatro meses parada. Há uma massa de pessoas em casa, sem produzir. Deixamos de produzir e vender 3 milhões de unidades, em um mercado de 10 milhões por ano. Vamos ter uma queda de produção de pelo menos 30%. Se continuar assim, teremos uma retração econômica muito grande e redução de empregos. Hoje, o segmento está com 1.800 trabalhadores e deve chegar a 3.000 com a mão de obra indireta. O governo tem que fazer esse comparativo entre a perda de arrecadação e os ganhos de empregos e na economia em geral.
JC – O mercado de ourivesaria tem potencial para crescer?
AC – Sim, sem dúvida. E muita diversidade também. Entre 2002 a 2007, tivemos uma empresa que reservava 92% de sua produção para exportar e chegou a ganhar prêmios por isso. O principal mercado era o norte-americano. A empresa em que trabalho não atua com marca própria e faz um commodity. Tem uma rede de lojas de alianças que trabalha com nossos produtos e vendem com a marca deles. Produzimos para outras empresas também. H. Stern e Vivara estão aqui, em Manaus. O segmento de joias, como o de relógios, é um mercado de moda, de adorno. Nosso volume de peças femininas, por exemplo, é muito grande.
JC – É verdade que as mulheres são maioria nas linhas de produção? Isso deve ao fato de o trabalhador do polo relojoeiro precisar de um cuidado especial e detalhismo, em relação aos demais?
AC – Temos praticamente só mulheres na produção. E isso se deve justamente à delicadeza no trabalho. Você vai ver homens em outros setores da fábrica. Relógio é um produto delicado e a ferramenta mais pesada que usamos é um martelo de 100 gramas.
JC – O senhor mencionou que também foi relojoeiro…
AC – Minha primeira profissão foi de relojoeiro reparador. Somente depois fui trabalhar com relojoaria industrial. Aproveitando a oportunidade, informo que o Sindicato, com o apoio da Fieam, está montando um curso de relojoaria em Manaus, que será ministrado pelo Senai-AM. Existia uma escola assim em São Paulo e conseguimos resgatar seu acervo para este trabalho. Já está sendo tudo montado e o curso que habilita o profissional para trabalhar no Distrito, ou para se tornar um prestador de serviço para o mercado.
JC – Vemos relógios que já se tornaram praticamente joias, em termos de valor de mercado. Como o produto chega a esse patamar?
AC – Tem a importância do artista que está fazendo o design do produto em questão e há o histórico da empresa. Fabricantes seculares da Suíça têm um valor agregado muito grande. Existem empresas novas que possuem valor mais alto, inclusive. Mas, você está pagando pelo status. A Ferrari, por exemplo, vai produzir aquele “x” de peças e gera um valor simbólico muito mais elevado do que o material que aplica ali, ou mesmo a tecnologia. Na linha de empresas nacionais, temos muitas que trabalham com marcas internacionais também, importando os componentes para montar e revender somente no mercado doméstico. A qualidade do artigo brasileiro de marca própria pode até ser melhor, mas o preço será menor do que o da marca estrangeira, pelo nome.
JC – De onde vem a fama do relógio suíço?
AC – Quem inventou o relógio de pulso? Santos Dumont, o pai da aviação, que fez isso para facilitar a consulta das horas, no momento do voo. Ele pediu ao joalheiro Cartier que desenvolvesse uma forma de colocar um relógio de algibeira no braço. A Suíca, por outro lado, é o berço da relojoaria e investiu muito nisso. O Senai, até 1985, contava com uma escola bancada pelo centro relojoeiro suíço, porque os fabricantes daqui importavam mecanismos de lá. Como o mercado japonês começou a tomar conta, os Suíços cancelaram o convênio.
JC – Um dos produtos em alta no mercado atual é o smartwatch. A indústria relojoeira tem preocupação em agregar essas funcionalidades, ou há alguma limitação por PPB?
AC – O smartwatch não é considerado relógio, mas bem de informática, porque está ligado à telefonia. Sozinho, ele não funciona e tem que estar ligado a um smartphone para fazer a integração de informações. Hoje, já existe um fabricante nacional de bens de informática que já está deixando de importar para produzir em Manaus. As quatro indústrias médias do polo relojoeiro já estão fazendo importações do produto pronto e fazem a revenda com sua marca.
JC – Como as empresas do segmento estão vendo o desenrolar das propostas da Reforma Tributária e eventuais efeitos para a ZFM?
AC – É uma incógnita muito grande. Mesmo com tudo o que se fala hoje, ninguém consegue fazer conta no papel e dizer se vai ser afetado ou não. O ministro Paulo Guedes apresentou agora a primeira proposta do governo, que é fundir o PIS e a Cofins em alíquota única. Mas, ninguém sabe dizer qual será o valor da mesma, se vai ter crédito presumido, etc. A gente não consegue encontrar um horizonte para preservar a Zona Franca, porque não sabe como vai ser. Há uma insegurança jurídica muito grande. Mesmo no caso do Amazonas, a lei estadual só vai até 2023, apesar de a ZFM ter sido prorrogada até 2073. Fala-se que se trabalha na nova lei de incentivos estaduais, em um grupo de estudo, mas ainda não há essa previsão. Recebo ligações de associados questionando isso.
JC – A Zona Franca de Manaus é o motor da economia do Amazonas, mas vemos problemas, como falta de isonomia para as indústrias e a constante dificuldade para asfaltar o Distrito. O poder público está tratando bem as empresas o PIM?
AC – A gente percebe que existe uma colaboração muito grande entre os governos estadual e municipal. E já havia um convenio entre a Prefeitura de Manaus e a Suframa para o asfaltamento. Mas, a pandemia tirou o foco e a prioridade passou a ser salvar vidas. A Fieam e o Cieam estão em interlocução direta com as autoridades para conseguir os avanços necessários. Questões como essa, da prorrogação da lei estadual de incentivos, preocupam. Mas, a colaboração dos governos é positiva. Podemos dizer que sempre estão de portas abertas e procuram atender às demandas. Esse relacionamento é fundamental, pois temos de ser parceiros.