24 de novembro de 2024

Luthier Rochinha e a cidade flutuante

Há 55 anos a cidade flutuante era desmontada da frente da cidade de Manaus, que acabava de ver o projeto da Zona Franca aprovado, visando seu desenvolvimento econômico, e a capital do Estado não poderia ter uma favela como cartão postal para quem chegava por via fluvial.

A cidade flutuante, um amontoado de casebres construídos sobre toras de açacu, cresceu durante mais de 40 anos reunindo residências e vários estabelecimentos comerciais, chegando a ter, de acordo com levantamento realizado em 1966, um ano antes de sua destruição, em 1967, 1.950 habitações, com 11.400 moradores, espalhados pelos igarapés de Manaus, do Quarenta, da Cachoeirinha, de São Raimundo, de São Vicente e do Educandos, além da frente da escadaria dos Remédios. Foi num desses flutuantes, localizado no igarapé de Manaus, que viveu o cearense José Rocha Martins, o Rochinha, como ficou bastante conhecido na cidade, por mais de 60 anos, devido ser um exímio luthier.

“Acredito que meu pai tenha construído sua casa flutuante ainda na década de 1950 e, em 1966, quando começou a ouvir que a cidade flutuante seria destruída, tratou de desmontá-la, alugando um local para morarmos”, contou o pesquisador e blogueiro José Rocha, um dos filhos de Rochinha.

“O Governo do Estado distribuiu terrenos para os moradores em bairros que surgiam, como Alvorada, Coroado, Santo Antônio e Conjunto Costa e Silva. Foi oferecido ao meu pai um imenso terreno no São Jorge, mas ele disse que era longe, e não quis, preferindo pagar aluguel”, completou.

Duas vigas

Mas o interessante dessa história é que, 55 anos depois de as centenas de flutuantes terem sido derrubados e deixado de existir, ainda restam madeiras do flutuante de Rochinha na casa onde um dia ele morou.

“Meu pai alugou um local para morarmos na rua Huascar de Figueiredo, próximo onde ficava o nosso flutuante, no igarapé de Manaus. Lá tinha um terreno no qual ele guardou as madeiras da casa. No ano seguinte, em 1967, ele comprou esse terreno, aqui na Vila Paraíso, na rua Tapajós, e construiu a casa com as madeiras que tinha guardado. Com o tempo, as peças que foram apodrecendo, ele substituiu por outras, mas as vigas, de madeira nobre, continuam até hoje, do mesmo jeito, e daqui a cem anos vão permanecer sem apodrecer”, falou Rocha.

Duas vigas, de cerca de seis metros cada uma, possivelmente andiroba, muito usada na época, seguem na casa de dois andares. Nessa casa Rochinha viveu até se separar da esposa, em meados da década de 1970, mas os filhos construíram outra, bem ao lado da casa original onde o luthier morou até morrer, em 2007, com 83 anos. Rocha mora na casa desde então. Pesquisador de histórias de Manaus, ele guarda dois violões feitos pelo pai, com etiquetas onde está escrito: ‘Fábrica de Instrumentos de Corda – de José Rocha Martins – violões, bandolins, cavaquinhos, etc. – Feitos exclusivamente a mão – Artesanato amazonense – Rua Huáscar de Figueiredo, 1191 – Manaus Amazonas’ e, detalhe, os dois instrumentos estão assinados por ele, um com o ano de 1974.

“Ele assinava todos os instrumentos. Acredito que muita gente, em Manaus, ainda tenha instrumento seu, pois meu pai os fabricou por mais de 60 anos, desde 1940, quando começou a trabalhar como ‘boy’, na fábrica de instrumentos ‘Bandolim Amazonense’, até sua morte. Guardo também duas peças de madeira com as quais ele iria fazer mais um instrumento, mas não deu tempo”, revelou.

Espaço cultural

Rocha viveu na cidade flutuante desde seu nascimento até os dez anos de idade, e lembra muito bem de como era a vida no lugar.

“A parte comercial, com lojas vendendo os mais variados produtos, farmácia e até boate, estava localizada na direção do Mercado Adolpho Lisboa. Na época da vazante as casas ficavam na terra. A nossa casa era bem ao lado do campo, entre Huascar de Figueiredo e Lauro Cavalcante. Quando tinha jogo, era bolada direto na nossa parede. Se a bola caísse para dentro de casa, minha avó furava”, riu.

“Na vazante o pessoal limpava os terrenos. Naquela época as pessoas já jogavam lixo para dentro dos rios e igarapés. Quando vinha a cheia, tudo mudava. Muito banho de rio, por sinal repleto de peixes e jacarés. O pessoal pescava da varanda de casa várias espécies de peixe, inclusive piranhas, mas nunca soube de ninguém ter sido atacado por elas, ou por jacarés. Nosso pai nos ensinou a nadar, eu e meus irmãos, desde pequenos, para não nos afogarmos se caíssemos nas águas. E a água que bebíamos era encanada, vindo de terra”, recordou.

“Se um vizinho se desentendia com outro, soltava seu flutuante das amarras em terra e ia para outro lugar”, lembrou.

Agora Rocha pretende transformar a casa, na Vila Paraíso, num espaço cultural onde as pessoas possam se reunir para discutir e fazer cultura, e conhecer as vigas do flutuante.

“Será uma forma de homenagear meu pai, resguardando o legado que ele deixou para a cidade através de sua arte de fazer instrumentos musicais”, concluiu.

Evaldo Ferreira

é repórter do Jornal do Commercio

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