23 de novembro de 2024

Máscaras resgatam cultura witoto

Os witoto do Peru e Colômbia foram escravizados e alguns fugiram para o Brasil. Hoje seus descendentes relembram sua história

Os witoto, ou uitoto, são um povo originalmente habitante das margens do Putumayo, entre o Peru e a Colômbia, que entrou para a história como os demais povos indígenas da América, graças ao genocídio imposto por homens inescrupulosos.

No início do século passado o seringalista Júlio Cesar Arana, sócio majoritário da Peruvian Amazon Company, do Peru, foi acusado pela Inglaterra de escravizar não só os witoto, na extração de caucho, bem como os ocaina, muinane e andoque. Para provar sua inocência, em 1912, Arana contratou o fotógrafo/cineasta português Silvino Santos, que morava em Manaus, para documentar seus seringais e produzir fake news mostrando que tudo funcionava às mil maravilhas nos locais. Esse material seria apresentado na corte inglesa, que queria julgar o seringalista.

Os witoto, ou uitoto, são um povo originalmente habitante das margens do Putumayo
Foto: DIvulgação

Naquele mesmo período, grupos pequenos de witoto se arriscaram a descer o Putumayo e mais adiante atingir o Solimões, fugindo em busca de um lugar onde pudessem viver livres. Encontraram esse lugar numa região do município de Amaturá, e lá permaneceram sob a proteção dos religiosos franciscanos, que mantinham uma base na região.

Tanto era o medo daquelas pessoas de voltarem a ser escravas que em nenhum momento elas relutaram em esquecer sua cultura e tradições, para que não fossem reconhecidas como witoto, aceitando totalmente a doutrinação religiosa de seus protetores.

“Minha bisavó, que veio num desses grupos, passou a proibir que seus descendentes, inclusive, falassem a língua witoto. Seu passado tinha que ser completamente apagado”, contou a witoto, aluna de pedagogia, Vanda Ortega Witoto, que hoje mora no Parque das Tribos, em Manaus, e agora, mais de cem anos depois, faz um trabalho de formiguinha tentando trazer de volta ao menos parte da cultura de seu povo.

Vanda é modelo das máscaras
Foto: Divulgação

Até hoje, segundo Vanda, os witoto que habitam o alto Solimões, evitam se assumir descendentes daquele povo, ainda com receio de serem discriminados, ou mesmo perseguidos.

Produção de máscaras

A linha de produção das máscaras é a céu aberto
Foto: Divulgação

No início da pandemia, em Manaus, em março do ano passado, foi na casa de Vanda que as indígenas do Parque das Tribos começaram a produzir máscaras de proteção contra o coronavírus.

“As mulheres, que faziam artesanatos para vender, com tudo fechado, ficaram sem uma fonte de renda. A única coisa que poderíamos fazer e vender eram as máscaras. Através das minhas redes sociais pedi ajuda, que nos doassem tecidos e máquinas de costura. Com o apoio da FAS (Fundação Amazônia Sustentável) conseguimos tecidos e máquinas e começamos a produção”, lembrou.

Como a mãe de Vanda, a kokama Leia Martiniano, é costureira, fazer as máscaras foi fácil. Ela ensinou para as outras mulheres e, no auge da pandemia, a produção de máscaras no Parque das Tribos chegou aos milhares por mês, saindo da casa de Vanda. Daquela forma elas conseguiram sustentar suas famílias.

À medida que a pandemia desacelerou e as coisas voltaram ao quase normal, as outras mulheres retornaram à confecção de artesanatos, mas Vanda, sua mãe e três irmãs continuaram com a produção de máscaras.

“Atualmente produzimos de 50 a 80 unidades por dia, divulgadas nas minhas redes sociais e logo vendidas”, disse.

O interessante das máscaras de Vanda é que elas trazem um pouco da cultura witoto, resgatada pela indígena. São quatro modelos, cada um com um desenho. Para um leigo são apenas grafismos que nada significam. Engano.

Significado dos grafismos

Um dos desenhos representa o caminho da larva. Larvas são um dos principais alimentos protéicos dos witoto, encontradas nos caules das palmeiras, principalmente das pupunheiras, e consumidas in natura. São consideradas um alimento sagrado; outro desenho é de uma cobra. O animal cobra significa proteção para os witoto. Quando eles constroem uma maloca, uma cobra deve ser pintada num dos pilares como forma de proteção para aquela moradia e seus habitantes; o desenho do triângulo representa a formação geométrica do alto das suas malocas. Ele representa as mãos postas do deus Mooma, criador do povo witoto; já o desenho da espinha do peixe lembra o principal alimento dos witoto. Os peixes são fartos tanto no Putumayo, quanto no Solimões.

Das máscaras, Vanda está expandindo sua produção para as camisas, saias, bolsas e almofadas.

Originalmente, os witoto usam o tururi, uma fibra da palmeira ubuçu, para fazer vestimentas e lençóis, mas Vanda pretende usar tecidos industrializados como matéria-prima.  

“Já estamos produzindo e vendendo, mas ainda em fase experimental. Estou abrindo a minha empresa e até o final do mês pretendo realizar o lançamento oficial dos produtos, todos com estampas inspiradas em grafismos witoto. Fiz pesquisas na Universidade da Colômbia, e lá eles têm um grande acervo sobre meu povo. É das imagens e desenhos que estão nesse acervo, que busco a inspiração”, contou.

“Com esse trabalho pretendo fortalecer a história do meu povo e gerar ganho econômico para as mulheres do Parque das Tribos”, concluiu.

Atualmente, 35 etnias habitam o Parque Das Tribos, com 700 famílias e cerca de duas mil pessoas.

Foto: Divulgação

Evaldo Ferreira

é repórter do Jornal do Commercio

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