Me acompanhou em setembro de 2020 o livro ‘Manaus: amor e memória’, do poeta Thiago de Mello (n. 1926). Compartilho agora, passados quase seis meses, minhas impressões sobre esse trabalho.
Nele o escritor nos leva para a Manaus de sua juventude, entre as décadas de 1930 e 1940 (vez ou outra regredindo à década de 1920 e avançando até a de 1950), a cidade que vivia tempos amargos mas que continuava risonha, à espera de dias melhores. É uma obra memorialística, mas não da forma tradicional que conhecemos, em que se tenta afirmar um passado idílico, como o autor deixa claro: “Advirto que aqui não entra nem sombra de sentimento saudosista. Quem me conhece, de conversa e de leitura, sabe que a minha preocupação maior, e também a minha esperança mais pelejada, está no futuro” (p. 22). Nos são apresentadas as alegrias e as dificuldades daquele jovem nascido em Barreirinha, de infância humilde e apaixonado pela terra.
Thiago de Mello idealizou o livro em 1973, durante seu exílio no Chile. Prometeu redigi-lo quando retornasse ao Brasil. O escreveu entre outubro de 1981 e outubro de 1982, quando já era um jovem senhor de 55, 56 anos, com muito para contar sobre sua infância em Manaus.
Por ser tratar de um livro de memórias, ele começa a falar sobre o tempo, tempo esse que dava e sobrava. Não era ainda a nossa unidade de medida que nos deixa todos os dias aflitos. Conversava-se sem se preocupar com atrasos. “Uma das esplêndidas instituições culturais de Manaus daquele tempo era a conversa de calçada. Aberta a boca da noite, em tudo quanto era rua, as conversas começavam, bem defronte do portão. Uma das tarefas caseiras, logo depois da janta, era colocar na calçada as cadeiras da conversa. De preferência, cadeiras de embalo. Melhor ainda se fossem de palhinha. Crescemos no meio dessas práticas diárias, ouvindo fascinados grandes conversadores, excepcionais contadores de casos e estórias do rio e da floresta, de onças e de serpentes, de febres e naufrágios, de assombrações e magias” (p. 33). Tempo de visitas, de passar o dia na casa dos amigos e vizinhos. Tempo da sesta depois do almoço, do respeito pelo sono alheio. Tempo de tomar benção aos pais. Costumes que muitos de nós ainda preservamos.
Ainda sobre a memória, é bom pontuar que Thiago de Mello não recorreu apenas às suas. Para a feitura do livro ouviu várias pessoas de sua geração e mais velhas, como sua mãe, dona Maria, Ulysses Bittencourt, Mário Ypiranga Monteiro, Luiz Bacellar, Emídio Vaz de Oliveira, Eldah Bitton, José Franco de Sá, Moura Tapajoz, Ruy Lins, Samuel Benchimol, Aderson Dutra e tantos outros amigos de infância, vizinhos e colegas de trabalho.
Como dito anteriormente, eram tempos difíceis. Ajudava a enfrentar os dissabores da vida a cordialidade entre as pessoas, umas ajudando as outras como podiam, fosse com um cumprimento, um pouco de açúcar, uma tigela de mingau de tapioca. “Isso não quer dizer”, registra Thiago, “que a vizinhança estivesse formada por pessoas excepcionais. Não. Eram pessoas comuns, mas com as triviais virtudes e imperfeições humanas, que é como deve ser. Só que sabiam valorizar a convivência” (p. 35). Foi dentro desse universo, formado pelas ruas Dr. Almínio, Isabel, José Paranaguá, Lima Bacury e Quintino Bocaiuva, que ele viveu intensamente, também se aventurando por outros lugares da cidade.
A cidade de dimensões geográficas bem definidas, dividida em pouquíssimos bairros naquele período, tinha sons e cheiros inconfundíveis. Aqui Thiago de Mello atua como um perspicaz antropólogo: Os sons dos apitos das fábricas anunciando o início das atividades, acordando seus funcionários, marcando o horário do almoço e do retorno, dos navios chegando e partindo, o badalar dos sinos das igrejas nos dias santificados, as músicas dos vendedores de comidas e miúdos, dos hidroaviões da PanAir, das casas onde se cantava e tocava piano e violino, dos alto-falantes dos cinemas e dos que informavam o desenrolar da Segunda Guerra Mundial. Eram sons dos mais variados. (p. 43-72). Os cheiros, assim como os sons, eram diversos. De borracha e madeiras sendo cortadas, dos óleos e essências, do sangue e das vísceras do Matadouro, dos cheiros do Porto, da fumaça dos navios, da graxa e das mercadorias transportadas, dos produtos nobres das casas comerciais refinadas, do guaraná, dos peixes, frutas, verduras, mingaus e das tartarugas do Mercado Municipal, das flores, dos remédios vermífugos e fortificantes, dos cabelos das jovens caboclas (p. 75-81).
A última parte do livro é o ABC da cidade, ou como denominou o poeta, “ABCedário íntimo para uso público – um ABC que já perdeu a voz mas nos ensina a soletrar o tempo” (p. 85-251). Em cada letra são abordadas memórias sobre praças, ruas, escolas, clubes, livrarias, cinemas, personagens e brincadeiras. É o A dos árabes, que chegaram sem um tostão no bolso mas que conseguiram prosperar, dos alfaiates e alfaiatarias com suas sedas e linhos; B de borracha, cortada ao meio nas casas exportadoras, dos bondes diários, onde se conversava, se via e namorava, das brincadeiras de roda embaladas por cantigas; C de Clube da Madrugada, já na década de 1950, ali na Praça do Ginásio (como ele chama a Praça da Polícia), das catraias que levavam e traziam trabalhadores do Educandos e São Raimundo, da Carmem Doida, muitas vezes incompreendida, a dançar nas ruas do Centro. É um abecedário que revela, instiga, emociona e diverte.
Além de ser um livro de leitura agradável, ‘Manaus: amor e memória’ é uma fonte rica de informações sobre a cidade entre os anos de 1930 e 1940, período pouco estudo em detrimento de outros recortes históricos (1890-1920 e 1960-1970, por exemplo) mas que nos últimos anos vêm despertando o interesse de pesquisadores das mais variadas temáticas, em cujas pesquisas, nas referências, entre os memorialistas, aparece o nome do presente trabalho resenhado.
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